Existe um “estilo português” de filmar? De contar histórias?A minha experiência de espectador de cinema e em especial de espectador de cinema português diz-me que não; não existe um “estilo português” de filmar, mas sim várias formas de expressão cinematográfica, várias formas de contar histórias, tão diversificadas quanto o número de realizadores que temos. Mais: penso até que a interrogação à volta da existência de um “estilo português”, normalmente apelidado de “lento”, “aborrecido”, “teatral”, além de recorrente, é também sintoma de um enorme equívoco que nasceu a partir do divórcio entre o público português e o cinema nacional, uma ideia completamente fora da realidade. Sei que me arrisco a ser politicamente incorrecto e a fazer estremecer algumas “virgens ofendidas”, mas estou convicto que aqueles que têm a noção de um “estilo português” são precisamente os mesmos que não vêem ou provavelmente nunca viram cinema português e raramente têm disponibilidade para o descobrir. Porque a ideia de um “estilo português” pressupõe que há um “estilo americano” ou um “estilo comercial”, ou outro, não interessa, que deveríamos adoptar como fórmula. É esta ideia de replicação que tem impedido, aliás, a justa visibilidade de cineastas como Jorge Cramez, Pedro Costa, António Ferreira, Mário Barroso, a dupla Tiago Guedes e Frederico Serra, entre tantos outros, gente com um estilo próprio, mas muito diferentes entre si. Permitam-me dar o exemplo de um dos melhores filmes que vi nos últimos anos: “O Capacete Dourado” de Jorge Cramez. Era uma obra de estreia jovem, vigorosa e emotiva. Teve pouco mais de 5 mil espectadores.
Quais as principais diferenças entre o estilo Manoel de Oliveira – que há dias fez 101 anos – e o dos jovens realizadores?
As diferenças são inúmeras e não sei se deveríamos colocar a questão dessa forma, porque se o cinema de Manoel de Oliveira é indissociável da História do Cinema, seja ela nacional ou mundial, não me parece que dele dependam os nomes que têm surgindo na nossa produção recente. Naturalmente, Manoel de Oliveira é considerado o “pai do cinema português”, mas não me parece que seja uma influência mais óbvia junto dos novos realizadores do que outros grandes cineastas como Chaplin, Ford, Eisenstein, Murnau, Godard, Cassavetes, e aqui a lista poderia ser infinita, para lá ainda dos mestres da actualidade, desde David Lynch ao Tsai Ming-liang, entre muitos outros e que só eles poderão enunciar. O que sei, e mais uma vez reafirmo, é que cada um dos nossos jovens realizadores tem a sua própria identidade e visão, e se é verdade que não vivem em ilhas isoladas, ou seja, imunes a várias influências, também é um facto que não os encontramos num aquário estanque, fechados dentro de um qualquer movimento ou “estilo colectivo”.
Como se pode promover e captar mais público para a produção independente ou os jovens cineastas nacionais?
Primeiro do que tudo existe uma luta de mentalidades a realizar e um processo de sensibilização cultural que urge ser feito por todo o tipo de agentes a operar no cinema e a favor da nossa produção; o país, não só no cinema, mas em muitas outras áreas sociais e culturais, vive uma verdadeira crise de identidade, aspecto que normalmente o leva a importar todo o tipo de modelos culturais estrangeiros sempre em substituição da sua própria vivência e das suas identidades, como se não nos bastasse ser nós próprios. Essas questões são muito complexas e têm sido melhor analisadas por filósofos e escritores como José Gil, Eduardo Lourenço ou até o recente Prémio Pessoa, D. Manuel Clemente. Mas acima de tudo, penso que era preciso abrir mais canais de distribuição e rentabilizar melhor os espaços culturais como os cine-teatros e os centros culturais com condições para projecção de cinema e que são geridos por municípios com essas competências. Essa pode ser uma das soluções, mas há muito mais que deve ser feito e que deveria começar essencialmente pelo debate de ideias, pela reflexão sobre as necessidades que existem, e finalmente através de uma concertação de interesses junto dos poderes públicos e institucionais.
O que é a *aurora?
A *aurora é um projecto de programação e exibição de cinema pensado para a região Centro e Oeste que produz e programa ciclos de cinema ou retrospectivas de autor, e que ainda promove extensões de alguns dos melhores festivais de cinema em Portugal, a exemplo do que aconteceu com o IndieLisboa e o DocLisboa em Leiria e Alcobaça. A ideia fundamental é cultivar a cinefilia, descentralizar a distribuição de cinema, dar visibilidade a novos e velhos autores do cinema, restituir o público ao contacto com a sala de cinema, lançar o debate e a discussão sobre o poder das imagens, relançar os mitos cinematográficos, enfim, colocar a paixão do cinema sempre na ordem do dia e fazer disso quase um “estado de espírito” ou uma “forma de espiritualidade”, aspecto que julgo se tem perdido nos últimos anos por várias razões. Além de uma solução cultural para os espaços culturais com deficiências e necessidades nesse campo, a *aurora faz ainda das ideias e da criatividade um ponto de partida para criar programas e ciclos, funcionando em rede e criando relações privilegiadas com diferentes públicos e espaços: Leiria, Alcobaça, Rio Maior e Caldas da Rainha.
E assumir o papel de realizador?
Quem sabe; não desminto que seria algo que gostava de arriscar fazer, e onde não duvido me sentiria bem. O desejo, as ideias, esboços de argumentos e imaginário não me faltam, mas o cinema é uma arte onde é preciso reunir uma série de elementos e circunstâncias a que não basta emprestar a paixão ou o talento. Também é necessário criar experiências e obter alguma formação e principalmente ver muito cinema. Espero apenas um dia ter uma melhor resposta do que esta.
Entrevista por Jacinto Silva Duro (para a edição de 17 de Dezembro de 2009)