sábado, 5 de setembro de 2009

A assinatura de Quentin Tarantino


Dá um gozo enorme ver Inglourious Basterds só por isto: Quentin Tarantino é a personagem principal da sua própria obra. Mesmo que nunca apareça, mesmo que se mantenha na sombra, mesmo que se limite a comandar tudo dos bastidores (de modo que não nos parece por acaso que uma das suas personagens centrais, Shosannah, tenha um momento em que diga que ali na França se dá muita importância aos realizadores: que é outra maneira de dizer que se dá muita importância aos autores, ou seja, à sua assinatura, evocando pelo meio a tradição cinéfila que desaguaria nos famosos Cahiers du Cinema e mais tarde na Nouvelle Vague). Como se afirmasse: só o realizador pode ser o grande, o derradeiro, e quem sabe, o único intérprete do seu filme.

A forma como o cineasta norte-americano faz da II Guerra Mundial um cenário para a sua bricolage de referências cinéfilas e pequenos sadismos, o gozo que tem em brincar aos soldadinhos em missão atrás das linhas inimigas, pondo ainda o dedo na ferida judaica, no trauma do Holocausto, e expondo a cobardia e a hipocrisia francesa durante o conflito, tudo isto aliado à tendência que mostra para ajustar contas com a própria História (editada segundo os seus próprios desejos, os seus próprios delírios), é, digamos, a marca do filme. E vale a pena sublinhar a palavra "marca" porque é da importância disto (a marca como autoria ou a autoria como marca) que interessa a Tarantino impôr - nesse sentido este é também um filme sobre o Cinema (assim mesmo, com maiúscula) e sobre a capacidade deste resistir a todos os totalitarismos, de forma literal contra o nazismo, de forma metafórica contra a ascensão do digital face à película 35mm (razão porque aquele cinema de Paris onde Hitler e toda sua vasta e impressionante galeria de acólitos se reúnem - Goebbels, Goering, entre muitos outros - acaba por se tornar numa simbólica fornalha que os destrói a todos: facto devido não apenas à deflagração da película de nitrato, mas reiterando igualmente o seu potencial como arma de guerra).

Mais: tem-se falado muito no poder da palavra que Tarantino faz uso, e é verdade, a palavra é neste caso, e mais uma vez, um dos seus destacados instrumentos, o qual serve para estimular e ao mesmo tempo estender (ao ponto da insustentabilidade e do sufoco, diríamos) a tensão dos diálogos (sempre geniais, sempre hipnóticos) ou das cenas a limites que em muitos momentos raiam o absurdo, o irónico e o lúdico. Uma tensão que aponta inevitavelmente para uma distensão e que encontra na explosão da película de nitrato e da dinamite (no cinema), nos tiroteios (na cave do bar parisiense) ou na pancada de um simples taco de basebol (em cheio na cabeça de um prisioneiro nazi) uma dimensão súbita e violenta, contudo cataclísmica, imponente e claramente libertadora. Este tipo de exuberância que provém obviamente do seu talento como dialoguista e do perfeito domínio do texto tem um eco visual que provavelmente não existirá em mais nenhum outro filme de Tarantino. Talvez nunca a relação entre palavra e imagem, entre literatura e cinema, tenha encontrado como acontece em Inglourious Basterds um tão perfeito clímax e uma tão sentida harmonia. É, aliás, na cena final (em que Aldo Raine desenha a sua última suástica na cabeça do nazi interpretado por um soberbo Christoph Waltz) que o jogo entre símbolo e significado encontra a sua mais pura consumação. Num mundo sem identidades, onde não exista "marca" ou "assinatura", onde seja impossível distinguir o bom do mau, o Bem e o Mal, sem autores, portanto, esse é um mundo onde não é possível viver.

Tão simples quanto isto: a assinatura de Quentin Tarantino é uma suástica cravada na testa de um nazi. E sim, caro Tarantino, esta é bem capaz de ser a tua obra-prima.

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