quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Workshop de Escrita Criativa para Guiões de Cinema em Leiria


Se a vossa cabeça anda a verter ideias e histórias a toda a hora sem saber o que hão-de fazer delas, esta é a iniciativa ideal para os ajudar: a escritora e realizadora Cláudia Clemente vai estar no próximo dia 14 de Novembro na livraria Arquivo em Leiria para dar um workshop de Escrita Criativa para Guiões de Cinema. São sete horas de recomendável exercício mental e escrito que podem limar o escritor de argumentos para cinema que há em si; e caso a coisa dê para o torto é certo que a Claúdia Clemente estará lá para os salvar (normalmente os argumentistas têm esta tendência: precisam de ser salvos deles próprios e dessa insegurança a que chamam "bloqueio criativo").

Bom, fica a dica entregue e fiquem ainda a saber que a formadora tem óptimo currículo: não se trata apenas do facto de ter estudado cinema em Barcelona ou de ter tirado o Curso de Realização Cinematográfica na Restart, ou para além disso ter ainda escrito um livro de contos (O Caderno Negro pela Tinta Permanente). Claúdia Clemente realizou, escreveu, produziu e montou curtas como A Mulher Morena, A Fábrica ou A Outra, mas foi em 2007 que conheceu um dos seus melhores momentos com essa bela curta documental que era & etc (sobre a editora independente com o mesmo nome), vencedora do Prémio de Melhor Curta-Metragem Nacional no doclisboa 2007.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Os raccords de Jorge Pelicano


Gosto muito de como o Jorge Pelicano usa e abusa de todos aqueles raccords em Pare, Escute, Olhe. E de como isso satura e impregna o filme de uma dimensão política, activista, nervosa quase (e que eu não tenho dúvidas será sempre vista com muita polémica e controvérsia), de quem se põe ao lado daquelas gentes, de quem toma claramente partido (e estamos a falar da região directamente afectada pelo fecho da linha do Tua). Não é inovador, nada disso (e basta lembrar o que Kubrick fez em 2001: Odisseia no Espaço), mas tem algo de desesperado: um desespero muito consciente do efeito dessa técnica, mas ainda assim desespero. É do desespero que gosto.

Mas os raccords, que a determinado momento se parecem sobrepor e justapor, ou entrecruzando-se como num entroncamento se entrecruzariam diferentes linhas de comboio - já não só ao nível visual, mas numa dimensão igualmente simbólica e metafórica -, criam ainda uma série permanente de contrastes (o povo e os políticos, o interior e o litoral, as promessas do passado e a realidade do presente, a vida e a morte, Portugal e o estrangeiro). Ou mais até de contradições, de analogias, de equívocos, usadas praticamente no limite como "figuras de estilo": Pelicano não tem medo de colocar as coisas preto no branco e o que ele não se cansa de afirmar com isto é que existindo uma culpa do isolamento e do abandono daquelas pessoas, esta pertence inevitavelmente aos políticos que conforme os anos e as épocas se contradizem, se desmentem, se ridicularizam mesmo com as suas estratégias para a zona.

Nesse sentido, estamos perante um filme que não deixa de ser também "político", um filme que aponta o dedo sem medo aos verdadeiros responsáveis e que usa de alguma ironia, por vezes mórbida (a evocação da Morte é constante: a começar pelas impressionantes imagens no interior da carruagem virada e do desespero das vítimas que são como uma imagem do Purgatório, além das cruzes no cemitério), e de algum cinismo, como se o realizador pagasse aos decisores, no fundo, na mesma moeda. Os políticos não têm voz porque a sua voz é o que ficou dos seus gestos e das suas políticas para a região; abandono, puro abandono, e das palavras vãs que ficaram perdidas nos arquivos e no tempo. Aqui é a vez de dar voz a outros: aos habitantes, aos jovens desiludidos, aos velhos, aos latidos dos cães que os acompanham, aos "discos pedidos", ao silêncio de um mundo esquecido e deixado para trás. E que morre.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pare, Escute, Olhe



Foi o grande vencedor da edição doclisboa 2009 na Competição Nacional de Longas-Metragens Portuguesas (revelando-se ainda um verdadeiro papão de prémios ao arrecadar igualmente no certame os prémios de Melhor Montagem e IPJ Escolas) e era o filme que já ontem muitos espectadores mostravam interesse em ver presente na extensão do festival em Leiria: Pare, Escute, Olhe de Jorge Pelicano é o filme escolhido para integrar a sessão de Filmes Premiados prevista para amanhã, quarta-feira, no Teatro Miguel Franco, pelas 18h 30. Uma obra que aborda o encerramento da famosa linha do Tua e procura retratar a forma como essa sentença amputou o rumo do desenvolvimento e ajudou acentuar mais ainda as assimetrias entre o litoral e o interior de Portugal. Uma viagem através de um Portugal esquecido, vítima de promessas quebradas e do esquecimento dos grandes decisores políticos.

Futebol de Causas em Leiria



Depois de perto de uma centena de pessoas terem assistido ontem à sessão de abertura da extensão doclisboa 2009 no Teatro José Lúcio da Silva de Leiria, a par de uma franca e saudável conversa no final da sessão entre o público e o realizador de Os Esquecidos, o leiriense Pedro Neves, hoje é a vez de repetirmos o feito com o jovem documentarista Ricardo Antunes Martins e o seu Futebol de Causas, filme presente na secção Footdoc (uma novidade durante este ano no festival). Uma obra que lança um olhar sobre o movimento estudantil e as crises académicas pelo ponto de vista dos jogadores da Associação Académica de Coimbra e nos elucida sobre a forma como estes contribuíram e se envolveram na luta contra o regime ditatorial vigente em Portugal.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Debates extensão doclisboa 2009


Está confirmado: as primeiras duas sessões da extensão doclisboa 2009 no Teatro José Lúcio da Silva de Leiria, onde poderemos ver os filmes Os Esquecidos (dia 26, 21h 30) e Futebol de Causas (dia 27, 21h 30), vão contar com as presenças dos respectivos realizadores para debate com o público. Uma oportunidade única de discutir com os jovens cineastas portugueses Pedro Neves e Ricardo Antunes Martins (na foto) todas as questões levantadas pelos seus filmes e as implicações de fazer um documentário.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Saramago e a Bíblia


Gosto de Saramago, o escritor, não gosto de Saramago, a figura pública, já de Saramago, o homem, nada posso dizer que nunca o conheci (tirando uma palavras rápidas e um autógrafo trocados em tempos numa Feira do Livro de Lisboa). As suas palavras em Penafiel sobre a Bíblia são redutoras, limitadas e preconceituosas, para não dizer imbecis (e para quem se diz ateu mostram um homem muito desconfortável sobre a relação dos homens com Deus e talvez mais desconfortável ainda com aquela que é a sua própria não-relação com Deus). Mas o que irrita mais nas recentes declarações de Saramago não é o facto de reduzir a Bíblia a um "manual de maus costumes", é não reconhecer que ali está um livro - cuja existência ele não pode pôr em causa e que só por sinal é o "livro" sobre o qual estão fundadas, para o bem ou para o mal, boa parte dos alicerces da nossa sociedade - e que um livro tem sempre imensas leituras possíveis. Logo ele que tantas vezes foi vítima na sua vida de "misinterpretations". Ora, basta ver que sem a Bíblia, Saramago nunca teria escrito Caim, tal como nunca teria escrito o Evangelho Segundo Jesus Cristo - e só isto torna indesmentível o peso histórico e a influência daquele texto. Depois, ver Deus como ele vê; "vingativo", "rancoroso", "má pessoa" e que "não é de fiar", é o mesmo que reduzir o Ensaio Sobre a Cegueira a uma simples história de gente degenerada e decadência. É por isso que não faz sentido agora vir Saramago negar à Bíblia a "liberdade de leitura" que conquistou, por exemplo, para a sua obra.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A infância de Dave Eggers


“Maurice and Spike and I talked a lot about how we were all like Max (...). I was completely hard to control as a kid. There’s nothing that Max does in my book which I wouldn’t do worse. I still find that all the boys I know that age are the same: they like to smash things, play with swords and guns. Regular boys’ stuff. But throughout the process of writing the screenplay and the book there were people in the movie studio who were expressing shock about what Max would do or say. Because it isn’t depicted any more."

“There is a whitewashed, idealised version of childhood that is popular in movies. It has the kids sitting neatly in their chairs, talking in some adult, sarcastic, overly sophisticated but polite way — a concoction that bears no resemblance to an actual kid.”

Dave Eggers, co-argumentista do filme O Sítio das Coisas Selvagens de Spike Jonze, em entrevista ao Times

Programa extensão doclisboa 2009 em Leiria


Está definido o programa da extensão doclisboa 2009 a realizar em Leiria entre os dias 26 e 28 de Outubro; a sessão de abertura será com um filme do leiriense Pedro Neves: Os Esquecidos (integrado na Competição Nacional), dia 26, às 21h 30, no Teatro José Lúcio da Silva (e com a presença do realizador para debate). Na segunda sessão teremos um filme sobre o desporto-rei: Futebol de Causas de Ricardo Antunes Martins (integrado na secção Footdoc), dia 27, às 21h 30, no mesmo espaço. Para dia 28, pelas 18h 30, no Teatro Miguel Franco, fica reservada uma sessão destinada a filmes premiados.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Epidemia de Lars von Trier


Talvez mais do que perturbador, o filme que teremos oportunidade de ver hoje no Pequeno Auditório do CCC das Caldas da Rainha, em mais um episódio do ciclo Perturbador! pelas 21h 30, Epidemia é um filme de uma estranheza reveladora que a cada momento e a cada cena que passa insiste em testar os limites da compreensão humana perante a natureza daquele tipo de fenómenos inquietantes e incompreensíveis (senão mesmo sobrenaturais) que teimam fugir ao controlo das suas personagens, mas ao mesmo tempo parecem depender delas.

Foi o segundo filme de Lars von Trier e o segundo filme da sua Trilogia da Europa (antes houve O Elemento do Crime, depois haveria Europa), obras que transformavam o continente europeu num território de tragédia e decadência, espaço de trevas e obscuridade (entre a Idade Média e o pós-apocalíptico que como sabemos são universos que se tocam muito bem), um mundo entre o fim e o princípio de qualquer outra coisa e que aqui também sentimos (não só pela fotografia a preto e branco granulosa, antes sobretudo pelo reino de sombras em que a história parece sempre querer entrar) actuar de forma profunda (mais até do que nos restantes capítulos da trilogia).

Mas Epidemia é ainda um filme sobre a arte de fazer cinema, sobre como escrever um guião cinematográfico e daí partir para a sua concretização num processo de permanente procura e descoberta criativa, onde as trevas e o desconhecido parecem naturalmente ter uma palavra importante a dizer. É por isso que Lars von Trier e o argumentista Niels Vorsel são os seus intérpretes principais, já que é neles (e com eles) que se inscreve o exercício de desconstrução cinematográfica a que assistimos (poderíamos dizer que é ainda um bom filme para alunos de cinema, quase como uma espécie de lição de anatomia).

O instante, aliás, que melhor resume toda a essência de Epidemia está na cena da pasta de dentes, quando Trier e Vorsel, movidos pela curiosidade (uma curiosidade que está sempre presente e é ao mesmo tempo o motor do desejo de fazer cinema que marca estas duas personagens) procedem a uma forma de autópsia sobre o quotidiano objecto apenas para tentarem perceber como este funciona - esta cena tem várias réplicas durante toda a história, na nossa opinião, como na cena real de autópsia a um cadáver morto pelo cancro ou na derradeira sequência de hipnotismo -, gesto que é, no fundo, comum ao próprio gesto de "realizar" este filme; um filme onde tudo está à vista, ossos, pele e vísceras, nas mãos de um cineasta clínico (e cínico) que poderia ser qualquer criança a abrir o corpo de uma boneca só por brincadeira.

domingo, 18 de outubro de 2009

O caso Polanski


Não sei quem é culpado no chamado caso Polanski e até admito que possa não haver culpados nesta história com mais de 30 anos - e cujos contornos nunca conheceremos na sua autêntica dimensão pois só dirão realmente respeito aos dois que nele se viram envolvidos. Também não estou aqui para fazer qualquer tipo de juízo moral (Deus me livre, fujo disso como o diabo da cruz) nem para aditar à controvérsia fácil qualquer forma de julgamento público (outra coisa feia de se fazer quando não se tem um conhecimento concreto dos factos que ocorreram e muito cómoda para quem a pratica sentadinho nas esplanadas de café). Os conceitos de moral e culpa, como sabemos, oscilam muito de um lado e do outro do Atlântico (céus, até do lado de cá e de lá da rua a coisa muda, quanto mais), razão só por si suficiente para me abster de definir em favor de outros tão complexas fronteiras, e que mesmo hoje continuam a não satisfazer inúmeras consciências.

Agora sei que há vítimas, tal como sei que há meninas de 13 anos que são mais do que "meninas de 13 anos" (sempre as houve e sempre as haverá) e "realizadores" que nunca deixaram de beneficiar do facto de serem realizadores para atingirem propósitos diferentes à mera realização de um filme (ou a uma sessão de fotografias como foi o caso). Contudo, e segundo podemos ver no documentário Roman Polanski: Procurado e Desejado de Marina Zenovich, o caso Polanski depressa se esqueceu das suas "vítimas" - essencialmente esqueceu-se sequer de perceber quem era a "vítima" ou até se ela existiria - para se tornar no objecto de uma outra perversão: a voragem dos media à roda de um caso, e sobretudo de uma figura pública, cuja vida e percurso consistia igualmente um "filme" pontuado pela tragédia e pelo êxito - é preciso não esquecer que Polanski, além de ter sobrevivido ao Holocausto e à perseguição nazi que vitimou a sua mãe, viu ainda a mulher e actriz Sharon Tate brutalmente chacinada pelos elementos do grupo satânico comandado por Charles Manson, já depois de ter conquistado Hollywood e tornar-se um realizador consagrado.

Talvez por isso, consiga compreender que um homem que sobreviveu a Hitler e a Manson tenha pressentido que o palco em que o seu julgamento se tinha tornado não era mais do que uma nova forma de "execução" que muitas vezes, e hoje talvez mais do que nunca, insiste em romper com o sentido de uma genuína justiça (como nos linchamentos do Velho Oeste, diríamos). Repito; não sei se Polanski é culpado, e muito menos estou aqui na tentativa de inocentá-lo, mas sei como os carrascos são muito rápidos e agéis a aparecer nos momentos em que a oportunidade convida: e isso assusta-me mais do que qualquer pormenor sórdido na vida do cineasta polaco. Polanski, melhor do que ninguém, teria o faro para os detectar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Acto radical ou gesto corajoso?


Como é sabido o doclisboa cortou este ano a sua ligação à RTP2 por considerar que o canal público não tem apoiado e divulgado suficientemente o documentário nacional e internacional. Um acto radical para muitos, um gesto corajoso para outros, a verdade é que pôs muita gente a discutir aquilo que por vezes não se discute: até que ponto o documentário como género e o documentário nacional como expressão cultural e social portuguesa têm sido tratados no nosso país? Sérgio Tréfaut, director do festival que colocou o cinema documental num plano que talvez nunca como agora havia antes conhecido, e Pedro Borges, director da distribuidora e produtora Midas Filmes (e um dos catálogos que mais tem feito por incluir o documentário no mercado nacional) esgrimem argumentos num artigo do Público contra Jorge Wemans, director da RTP2, que diz não compreender as razões que levaram ao divórcio entre o festival e o canal do Estado.

É um facto que a RTP nunca fez o suficiente para divulgar e promover o documentário português e o género numa grelha de programação onde os poucos exemplos se perdem na espuma de horários tardios e inconsequentes. Por outro lado, também é legítimo perguntar até que ponto este tipo de antagonismos produz resultados num panorama já de si pobre e pouco fértil para a divulgação do documentário nacional, dos seus autores e temas? Disto temos a certeza: a televisão (e essencialmente a televisão pública) como meio fundamental e propício ao desenvolvimento do documentário, mas também como um dos seus campos principais de expressão, tem vivido alheia ao crescimento e à dinâmica actual da nossa produção documental.

Não deixa realmente de ser uma injustiça observar como grande parte do país não conhece provavelmente aquele que é um dos seus géneros cinematográficos mais ricos e estimulantes do momento, capaz de reflectir as verdadeiras questões nacionais (e nesse aspecto parece-nos óbvio: a RTP continua demasiado politizada e não deveria responder directamente, como acontece, perante o poder governamental) e rico na formação de novos valores e nomes no panorama do cinema nacional. Para quem não tem oportunidade de viajar até Lisboa e viver aquilo que o doclisboa representa e concretiza neste domínio, o comportamento da RTP2 é naturalmente reprovável. O que prova mais uma vez que o canal público não cumpre aquilo para que foi criado: descentralizar a visão do documentário português e promover um olhar verdadeiramente equitativo dos nossos acontecimentos culturais (e não estamos só a falar do doclisboa, estamos a falar do documentarismo como uma forma de consciência e intervenção social).

(na imagem uma foto do filme Os Esquecidos, filme do leiriense Pedro Neves, presente na Competição Nacional)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Cartaz de Anti-Cristo


Gostamos deste tipo de cartazes; capazes de evocarem a tradição mais clássica da ilustração literária e ao mesmo tempo eficazes na sua capacidade de combinar design e inovação, unindo o clássico e o moderno, o presente e o passado. Na nossa modesta opinião, é o que achamos que acontece com este belíssimo cartaz para o filme-choque de Lars von Trier: Anti-Cristo, que deve estar daí a nada a estrear entre nós. E se não é crível que este seja o exemplar a chegar às ruas e às revistas quando a estreia ocorrer, já ficamos contentes por termo-lo descoberto, por simplesmente existir.

The Squid and the Whale


E perguntam vocês: o que tem o post abaixo a ver com cinema? Bom, para além da óbvia influência (Wes)Andersoniana expressa no clip, João Bonifácio também explica isso da seguinte maneira:

"Há que tomar em atenção que o nome da banda é inspirado no filme de Noah Baumbach, The Squid and the Whale. A graça do nome está num pormenor: The Squid and the Whale era a história da disrupção de um casal, e o seu efeito nos dois filhos. Ora, o filme era autobiográfico, embora Baumbach tenha tomado certas liberdades, em particular com a personagem do irmão. A graça disto é que, se pensarmos na forma com Dylan e os Smiths construíram o seu universo, vemos que há uma tensão entre extrema reserva e extrema exposição, entre criar uma personagem protectora que no fundo conta factos reais - é isso que o nome Noah and the Whale representa: a tensão entre o criador e a obra."

E pronto, está explicado, até porque não gostamos de misturar alhos com bogalhos.

Desde que nascemos até que morremos



"Isto vem na melhor poesia: desde que nascemos até que morremos é sempre a levar porrada. Larkin dizia: 'They fuck you up/ your mum and dad'. Podia esperar-se que depois do simpático começo que os nossos pais nos proporcionam, transmitindo maus genes, preconceitos e neuroses, tudo melhorasse. Não melhora. Porque depois vêm as mulheres (ou os homens, para quem gosta). E o que a mamã não conseguiu arruinar, há sempre uma mulher que o consegue de vez: é ela que "fuck you up" de vez. A biologia, a teoria dos jogos e a Bíblia explicam isto: em sociedade e em relações individuais funcionamos maioritariamente em regime "tit for tat". Isto é: tu fazes-me o bem, logo eu faço-te o bem a ti. O sistema que, em comunidades alargadas, é tão complexo que permite alguma estabilidade, tem a desvantagem de nas relações individuais transformar-se em "olho por olho dente por dente": quanto mais parecer que eu te faço o bem mais te posso cobrar; por mais que eu te diga que vou dar-te o correspondente bem já estou de olho ali no Zezinho ou na Zezinha. E assim o mundo dedica desde o seu início mais páginas à guerra dos sexos que às dos Homens.

O pequeno sistema de contribuições atrás mencionado é de simples descrição mas lenta aprendizagem. Enquanto são novos, os humanos esforçam-se por perceber o que correu mal na sua relação amorosa, culpam-se, imaginam vinganças, pensam que a vida acabou, tornam-se submissos, desorientam-se, copulam em demasia, perdem o gosto à cópula, etc. Uma vertente psicologista diz que o pior que lhes pode acontecer é não serem capazes de raciocinar sobre o assunto. A ser assim, das duas uma: ou ficam com o cérebro torcido ou (hipótese nossa) é bom que saibam escrever, pintar ou tocar um instrumento."

João Bonifácio em Sinfonia do Caos Amoroso (crítica ao disco The First Days of Spring dos Noah and the Whale no suplemento Ípsilon do jornal Público de 9 de Outubro de 2009)

doclisboa 2009



Começa hoje o maior acontecimento no campo do documentário em Portugal: a sétima edição do doclisboa volta a trazer aquilo que me melhor se faz no cinema documental por esse país e mundo fora. Uma edição que, tal como o Jorge Mourinha sublinha (e bem) hoje no Público vem para contar histórias, para nos falar de experiências e pessoas de uma forma eventualmente mais directa e clara em relação a outros anos. Talvez o filme que faça a abertura oficial do festival confirme exactamente isso: La Forteresse (The Fortress) do hispano-suiço Fernand Melgar é uma obra que entra num mundo normalmente vedado (mas isso, lá está, é a grande virtude do documentário) - um centro de acolhimento de requerentes para asilo político na Suiça (país onde se aplica a mais restritiva lei de asilo da Europa) - e nos mostra um microcosmos invulgar de pessoas marcadas pela exclusão e pelas suas diversas proveniências culturais, cuja esperança de uma vida melhor contrasta com um sistema diário e burocrático de pura classificação humana. Entre hoje e o próximo dia 25 de Outubro, este é apenas um dos muitos exemplos de alguns dos melhores documentários que irão passar pelas salas da Culturgest, Cinema São Jorge e Londres: num total de cerca de 200 filmes que a *aurora também terá o prazer de trazer até Leiria (26 a 28 de Outubro) e Alcobaça (20 a 23 de Novembro) num futuro bem próximo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Brincadeiras Perigosas no CCC das Caldas da Rainha (e não, não estamos a falar da Cristina Areia)



Não falta muito e é já daqui pouco: Brincadeiras Perigosas, a obra-choque que colocou definitivamente o nome do cineasta Michael Haneke no panteão dos grandes realizadores europeus contemporâneos, entra em cena no mesmo local onde a Cristina Areia andou a mostrar as maminhas para a Playboy, e claro, estamos a falar do Pequeno Auditório do Centro Cultural e Congressos das Caldas da Rainha, que recebe assim mais um episódio do ciclo de cinema Perturbador!, pelas 21h 30. Esta obra, curiosamente, conheceu dez anos depois um remake destinado a explorar o mercado norte-americano (e se a versão que nós vamos ver é na verdade a original, isso também demonstra bem o carácter actual que manteve), assinada pelo próprio Haneke e que replicava fielmente os mesmos planos e sequências do primeiro, apesar do elenco ser composto por actores americanos (entre eles Naomi Watts, Tim Roth ou Michael Pitt).

Mas neste caso o que nos interessa é o filme original: é esse o filme que vamos ter oportunidade de ver porque é esse o filme que o remake, embora todo o rigor e desempenho dos seus actores (apesar de tudo, Haneke é também um director de "actores", um homem capaz de tirar deles mesmo aquilo que eles não têm para dar), não conseguiu superar (até porque estar em 1997 não é o mesmo que estar em 2007). Um filme que explora a violência na sua dimensão mais amoral e niilista, como vertigem e como abismo, mas igualmente como a face de um mal profundo nesta nossa sociedade de contornos mediáticos e consumistas. Como se o que víssemos (a violência física e psicológica) fosse tão real por ao mesmo tempo ser tão prova da encenação em que vivemos. Para estômagos fortes, muito fortes, mas ainda assim imperdível.

sábado, 10 de outubro de 2009

2001: Odisseia no Espaço


Rever 2001: Odisseia no Espaço nunca é apenas uma revisão, é acima de tudo uma revelação, permanente e renovadora. E sim, há sempre novos pormenores: um gesto que nunca víramos anteriormente, uma cena que não havíamos apanhado (total ou em parte, literal ou metafórica), uma peça que encaixa na outra; essencialmente peças que encaixam umas nas outras e que à primeira vez, por desatenção, por incúria nossa, por um adormecimento da alma ou mera preguiça mental, não havíamos sido capazes de dispôr na sua lógica natural. Mas a obra-prima de Stanley Kubrick é um filme onde há muitas peças (imensas) e onde o puzzle acaba por constituir persistentemente uma coisa diversa daquela que víramos antes - o que faz de cada olhar nosso sobre aquelas imagens um processo inaudito de descoberta, uma viagem de estimulante transformação, uma experiência visual e mística, vá lá, para utilizarmos as frases mais recorrentes e comuns que normalmente lhe estão associadas.

Eu continuo a perceber que não percebo nada daquilo (apesar de ter a minha teoria: este é um filme sobre Deus e a sua relação com o Homem, mas também um filme sobre o lugar que esse Deus ocupa na nossa vida e existência e que é esse lugar que dá origem aos lugares para onde caminhamos como espécie em permanente evolução, mas isto é um pensamento - ou um julgamento - que tal como a sua linha de raciocínio se perde numa verdadeira espiral de sugestões, crenças e visões, e corre mesmo o risco de ser vítima da pressa dos seus entusiasmos). Ou ainda: que o menos importante ali é tentar perceber seja o que for, mas procurar sentir aquilo que se sugere, aquilo para o qual possa mesmo não existir uma definição verbal; o intangível, o não-dito, o não-visualizável. E sei que é um filme onde o cinema e a vida, a fé e o poder das imagens, a existência e o tempo, se confundem como em mais nenhum outro. E sublinho: em mais nenhum outro filme da História do Cinema. Quando o vejo, julgo que é isso que procuro: sentir-me fora do tempo, da existência, do corpo desta vida e da vida deste corpo, fora de tudo e de nada para assim estar mais dentro do mistério que somos.

Julgo que um velho amigo cinéfilo meu tem aquela que é até à data a melhor descrição que se pode ter deste filme: "vi, não percebi nada e gostei tanto". Estou com ele.

Patti Smith em Rio Maior



Termina hoje, pelas 21h 30 (estão naturalmente convidados a aparecer) o ciclo Músicos & Musicais no Cine-Teatro de Rio Maior com a projecção do filme de Steven Sebring sobre a madrinha do punk: Patti Smith - Dream of Life, um documentário que aborda as várias facetas da rocker, cantora, artista e poeta do mundo (esperamos não estar a ser demasiado solenes, mas a lista e o tom das definições parecem-nos muito justas). Ou talvez: Patti Smith como nunca a tínhamos visto (e sentido) como até aqui - filmado durante 11 anos, esta obra de Sebring é sobretudo uma incursão no mundo íntimo e privado da música norte-americana, tanto no plano público como no plano mais doméstico. Um filme onde a autora do seminal Horses (1975) faz da vida também um espaço de sonho (daí o título que é ainda o nome de um disco de Patti Smith editado nos finais da década de 1980) ou um espaço de recordação e evocação de épocas e pessoas que a marcaram de forma mais profunda e próxima. Mas o melhor talvez seja ainda ler o Luís Miguel Oliveira que, como sempre, explica melhor os filmes do que nós (ou os explica de uma maneira que só ele sabe explicar).

Notas sobre a cultura por Rui Vieira Nery


"Gastou-se muito dinheiro na construção de salas de espectáculos e auditórios em Portugal - e ainda bem - mas continua a não haver noção de que uma sala de espectáculos não serve para estar fechada. Só faz sentido se tiver actividade. Portanto, o passo a seguir seria ter programadores permanentes. É evidente que isto não dá votos. Mas há bons exemplos de salas que conseguiram criar dinâmicas de programação. Só que isso é um processo lento e exige alguma mudança de mentalidades, exige alguma noção da prioridade e investimento cultural como factor de desenvolvimento económico."

"Acho que (a actual política do Teatro Nacional de São Carlos) está numa enorme crise. É como ter um Rolls-Royce e depois não querer gastar dinheiro na gasolina."

"O principal problema da política cultural do Estado dos últimos 20 anos é que não há vontade política de a assumir como prioridade. Uma coisa que está clara em toda a Europa é que não há desenvolvimento económico e social sustentável sem uma componente cultural decisiva. Já não estamos a falar dos méritos espirituais das artes, mas de um sector que cria emprego, que gere mais-valias. É necessário dar ao Ministério da Cultura meios orçamentais adequados. O Estado não consegue fazer nem deixar fazer. Sou da geração do Tintim e costumo dizer que, nesta fase, tanto faz estar lá o general Tapioca como o general Alcazar porque a situação é a mesma. Penso que o engenheiro Sócrates, neste último ano, já por várias vezes reconheceu esta necessidade e deu a entender que haveria um investimento reforçado na próxima legislatura. Acabou por não haver uma quantificação no programa do PS."

Rui Vieira Nery em entrevista ao jornal Público de hoje