quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Os raccords de Jorge Pelicano


Gosto muito de como o Jorge Pelicano usa e abusa de todos aqueles raccords em Pare, Escute, Olhe. E de como isso satura e impregna o filme de uma dimensão política, activista, nervosa quase (e que eu não tenho dúvidas será sempre vista com muita polémica e controvérsia), de quem se põe ao lado daquelas gentes, de quem toma claramente partido (e estamos a falar da região directamente afectada pelo fecho da linha do Tua). Não é inovador, nada disso (e basta lembrar o que Kubrick fez em 2001: Odisseia no Espaço), mas tem algo de desesperado: um desespero muito consciente do efeito dessa técnica, mas ainda assim desespero. É do desespero que gosto.

Mas os raccords, que a determinado momento se parecem sobrepor e justapor, ou entrecruzando-se como num entroncamento se entrecruzariam diferentes linhas de comboio - já não só ao nível visual, mas numa dimensão igualmente simbólica e metafórica -, criam ainda uma série permanente de contrastes (o povo e os políticos, o interior e o litoral, as promessas do passado e a realidade do presente, a vida e a morte, Portugal e o estrangeiro). Ou mais até de contradições, de analogias, de equívocos, usadas praticamente no limite como "figuras de estilo": Pelicano não tem medo de colocar as coisas preto no branco e o que ele não se cansa de afirmar com isto é que existindo uma culpa do isolamento e do abandono daquelas pessoas, esta pertence inevitavelmente aos políticos que conforme os anos e as épocas se contradizem, se desmentem, se ridicularizam mesmo com as suas estratégias para a zona.

Nesse sentido, estamos perante um filme que não deixa de ser também "político", um filme que aponta o dedo sem medo aos verdadeiros responsáveis e que usa de alguma ironia, por vezes mórbida (a evocação da Morte é constante: a começar pelas impressionantes imagens no interior da carruagem virada e do desespero das vítimas que são como uma imagem do Purgatório, além das cruzes no cemitério), e de algum cinismo, como se o realizador pagasse aos decisores, no fundo, na mesma moeda. Os políticos não têm voz porque a sua voz é o que ficou dos seus gestos e das suas políticas para a região; abandono, puro abandono, e das palavras vãs que ficaram perdidas nos arquivos e no tempo. Aqui é a vez de dar voz a outros: aos habitantes, aos jovens desiludidos, aos velhos, aos latidos dos cães que os acompanham, aos "discos pedidos", ao silêncio de um mundo esquecido e deixado para trás. E que morre.

Sem comentários:

Enviar um comentário