quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Desde que nascemos até que morremos



"Isto vem na melhor poesia: desde que nascemos até que morremos é sempre a levar porrada. Larkin dizia: 'They fuck you up/ your mum and dad'. Podia esperar-se que depois do simpático começo que os nossos pais nos proporcionam, transmitindo maus genes, preconceitos e neuroses, tudo melhorasse. Não melhora. Porque depois vêm as mulheres (ou os homens, para quem gosta). E o que a mamã não conseguiu arruinar, há sempre uma mulher que o consegue de vez: é ela que "fuck you up" de vez. A biologia, a teoria dos jogos e a Bíblia explicam isto: em sociedade e em relações individuais funcionamos maioritariamente em regime "tit for tat". Isto é: tu fazes-me o bem, logo eu faço-te o bem a ti. O sistema que, em comunidades alargadas, é tão complexo que permite alguma estabilidade, tem a desvantagem de nas relações individuais transformar-se em "olho por olho dente por dente": quanto mais parecer que eu te faço o bem mais te posso cobrar; por mais que eu te diga que vou dar-te o correspondente bem já estou de olho ali no Zezinho ou na Zezinha. E assim o mundo dedica desde o seu início mais páginas à guerra dos sexos que às dos Homens.

O pequeno sistema de contribuições atrás mencionado é de simples descrição mas lenta aprendizagem. Enquanto são novos, os humanos esforçam-se por perceber o que correu mal na sua relação amorosa, culpam-se, imaginam vinganças, pensam que a vida acabou, tornam-se submissos, desorientam-se, copulam em demasia, perdem o gosto à cópula, etc. Uma vertente psicologista diz que o pior que lhes pode acontecer é não serem capazes de raciocinar sobre o assunto. A ser assim, das duas uma: ou ficam com o cérebro torcido ou (hipótese nossa) é bom que saibam escrever, pintar ou tocar um instrumento."

João Bonifácio em Sinfonia do Caos Amoroso (crítica ao disco The First Days of Spring dos Noah and the Whale no suplemento Ípsilon do jornal Público de 9 de Outubro de 2009)

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