segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Epidemia de Lars von Trier


Talvez mais do que perturbador, o filme que teremos oportunidade de ver hoje no Pequeno Auditório do CCC das Caldas da Rainha, em mais um episódio do ciclo Perturbador! pelas 21h 30, Epidemia é um filme de uma estranheza reveladora que a cada momento e a cada cena que passa insiste em testar os limites da compreensão humana perante a natureza daquele tipo de fenómenos inquietantes e incompreensíveis (senão mesmo sobrenaturais) que teimam fugir ao controlo das suas personagens, mas ao mesmo tempo parecem depender delas.

Foi o segundo filme de Lars von Trier e o segundo filme da sua Trilogia da Europa (antes houve O Elemento do Crime, depois haveria Europa), obras que transformavam o continente europeu num território de tragédia e decadência, espaço de trevas e obscuridade (entre a Idade Média e o pós-apocalíptico que como sabemos são universos que se tocam muito bem), um mundo entre o fim e o princípio de qualquer outra coisa e que aqui também sentimos (não só pela fotografia a preto e branco granulosa, antes sobretudo pelo reino de sombras em que a história parece sempre querer entrar) actuar de forma profunda (mais até do que nos restantes capítulos da trilogia).

Mas Epidemia é ainda um filme sobre a arte de fazer cinema, sobre como escrever um guião cinematográfico e daí partir para a sua concretização num processo de permanente procura e descoberta criativa, onde as trevas e o desconhecido parecem naturalmente ter uma palavra importante a dizer. É por isso que Lars von Trier e o argumentista Niels Vorsel são os seus intérpretes principais, já que é neles (e com eles) que se inscreve o exercício de desconstrução cinematográfica a que assistimos (poderíamos dizer que é ainda um bom filme para alunos de cinema, quase como uma espécie de lição de anatomia).

O instante, aliás, que melhor resume toda a essência de Epidemia está na cena da pasta de dentes, quando Trier e Vorsel, movidos pela curiosidade (uma curiosidade que está sempre presente e é ao mesmo tempo o motor do desejo de fazer cinema que marca estas duas personagens) procedem a uma forma de autópsia sobre o quotidiano objecto apenas para tentarem perceber como este funciona - esta cena tem várias réplicas durante toda a história, na nossa opinião, como na cena real de autópsia a um cadáver morto pelo cancro ou na derradeira sequência de hipnotismo -, gesto que é, no fundo, comum ao próprio gesto de "realizar" este filme; um filme onde tudo está à vista, ossos, pele e vísceras, nas mãos de um cineasta clínico (e cínico) que poderia ser qualquer criança a abrir o corpo de uma boneca só por brincadeira.

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