Poderíamos também dizer alguma coisa sobre
Senso, mas está tudo aqui (e o melhor mesmo é dar espaço a quem o faz melhor do que ninguém: João Bénard da Costa):
"Não se pode perceber o cinema de Visconti se o separarmos do que fez no teatro e do que fez na ópera. Se o cinema de Visconti é, como tantas vezes tem sido dito, um cinema teatral e um cinema operático (um cinema assumidamente melodramático) por igual a revolução teatral a que presidiu (e que é equivalente àquela que, pelos mesmos anos, o Actor's Studio originou na América) é uma revolução cinematográfica, como do cinema são inseparáveis as suas grandes encenações operáticas, sobretudo nos anos 50 e no período em que projectou a Callas como uma das maiores divas do século. Em Abril de 1966, pouco antes de fazer 60 anos, e no auge da reputação, Visconti, numa entrevista publicada no Evening Standard, respondeu nestes termos a S. Edwards que lhe perguntou qual das três artes (cinema, teatro ou ópera) ele preferia: 'Aquela em que não estou a trabalhar nessa ocasião. Quando enceno ópera, sonho com cinema. Quando estou a trabalhar no cinema, sonho com ópera e quando estou a fazer uma peça sonho com música. Trabalhar noutras areas, é uma mudança, uma pausa'. Convém ter presente que os filmes (...), sobretudo a partir de
Senso, são também essa pausa e que se interligam, todos, com as realizações teatrais e operáticas contemporâneas deles.
Senso é (...) um exemplo fulgurante. Se
Senso é, por essência e excelência, um filme ópera, não o é por começar num teatro de ópera - o La Fenice de Veneza - durante uma récita de
O Trovador de Verdi, quando Leonora e Manrico evocam, na varanda de Castellor, ‘l’onda de suoni mistici', 'gioe di casto amore'. O facto de se ouvir ópera durante os primeiros dez minutos do filme não é irrelevante (longe disso) mas não confere a
Senso a dimensão operática que inegavelmente tem. Essa dimensão vem da prodigiosa articulação entre as vozes dos protagonistas (sobretudo as de Alida Valli e Farley Granger) e a música off, no insólito aproveitamento operático da 7ª Sinfonia de Bruckner. Porque, nos 'duetos' ou 'árias' dos protagonistas (e haverá outros termos para nos referirmos aos passeios nocturnos de Franz e Livia pelas ruas de Veneza, à noite de amor deles em Lonedo, ou aos 'fortissimi' de Alida Valli, quer quando percorre os corredores para roubar o dinheiro dos patriotas, quer quando grita por Franz nas ruas de Verona?) o que os personagens dizem é sustentado a Bruckner (quer pelo 'adagio' para os momentos de intimidade, quer pelo 'scherzo' para os momentos de paixão) e as vozes são tão inseparáveis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto
Senso nunca mais se pode ouvir a 7ª de Bruckner sem 'sentir' que lhe falta essa dimensão de vozes ou sem a ouvir como música de 'acompanhamento'. Mas é igualmente impossível pensar em
Senso sem 'ouvir' Bruckner ou pensar neste filme sem essa banda musical.
Muitos filmes se fizeram e farão em que essa impossibilidade também existe, mas não conheço nenhum outro em que a sobreposição de música e vozes (sobre-impressas e justapostas) tenha conferido um tal relevo aos personagens, que nelas encontram (simultaneamente) a sua própria razão de ser e a sua potencialidade dramática. Nunca, como em
Senso, voz e música foram forçadas até esse exacerbamento, paradoxalmente num filme cuja estrutura não é nem musical nem teatral, mas, pelo contrário, profundamente literária (o romantismo da novela de Boito). Por isso mesmo,
Senso é um filme sem descendência. Ou melhor, é um filme cuja descendência não é cinematográfica mas operática. Se quiserem pensar numa posteridade de
Senso ela não se encontra em nenhum outro filme de Visconti (nem mesmo em
Rocco, o mais paroxístico de todos, nem mesmo em
Il Gattopardo, o mais coral de todos) mas nas encenações que, de 1954 a 1957, Visconti fez para o Scala de Milão de
La Vestale, da
Sonâmbula de Bellini, da
Traviata de Verdi, da
Ana Bolena de Donizetti ou da
Ifigénia en Táurida de Gluck, que revolucionaram todos os conceitos de encenação operática no século XX. E se quisermos pensar numa posteridade de Alida Valli (a Alida Valli de
Senso, papel supremo da sua carreira) o nome com que nos encontramos é o da mulher para a qual Visconti fez as referidas encenações: Maria Callas.
Entre o ponto limite das encenações propostas pelos autores do Método e o início da revolução operática da era Callas, ficou, como ponto de confluência e como ponto de divergência, esse filme chamado
Senso. Filme que tanto representa o apogeu de uma certa ideia de mise en scène, como o ponto de partida para a desconstrução dela, em que, de resto, ainda não se avançou muito mais do que o que Visconti deu a ver nas sequências de La Fenice ou nos minutos que decorrem entre Farley Granger pedir a Alida Valli os 3000 florins que lhe comprarão a deserção e ela lhos dar. Depois de atravessar, correndo, as sete portas de toda a história da perspectiva arquitectónica e pictórica (no palácio de Palladio) e da humana perdição nos meandros dela."
(excerto retirado do texto escrito por João Bénard da Costa, intitulado
Luchino Visconti: o último esteta, e incluído no livro
Violência e Paixão: Os Filmes de Luchino Visconti, organizado e editado pelo Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia, Odisseia de Imagens, da PORTO 2001 – Capital Europeia da Cultura)