sexta-feira, 31 de julho de 2009

Um quadro do Ford


E um "quadro" do Ford para terminar bem o dia (e o mês).

Bruce Lee x 3


Zhang Yimou, outra vez: o realizador chinês vai realizar um "biopic" sobre o mítico actor de artes marciais Bruce Lee. Ou melhor, são três filmes que contam a história deste ícone do cinema desde o nascimento até à sua morte em 1973. A primeira estreia está anunciada para Setembro do ano que vem e servirá para assinalar a efeméride que celebra os 70 anos do seu nascimento. Não há certezas quanto ao nome do actor que interpretará o papel de Bruce Lee, mas o pai será interpretado por Tony Leung Kar-Fai (o amante de O Amante na adaptação que Jean-Jacques Annaud fez do romance de Marguerite Duras em 1982).

Espólio de Leitão de Barros e Cottinelli Telmo


São boas notícias para parte do legado do cinema português (embora não só): a EPHEMERA - Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira recebeu durante esta semana o espólio da família Cottinelli Telmo e da família Leitão de Barros (a acompanhar estava ainda o espólio do Coronel Marques Leitão), que reúne segundo o blogue do historiador português um conjunto valioso de livros, revistas, periódicos e outros documentos, material que ocupava cerca de cinquenta caixas e seis grandes estantes.

Pode-se ler ainda ali que se trata "de um conjunto de espólios oriundos de famílias com um papel fundamental na história cultural do Portugal do século XX, na literatura, no cinema, na 'educação popular', na arquitectura e em outras áreas', assim como podemos estar descansados de que os 'espólios serão organizados e inventariados e progressivamente as suas peças mais interessantes (...) publicadas'." Mas o que nos interessa também destacar aqui é o valor da preservação que nos assegura a partir de agora de que pelo menos alguns documentos de dois dos maiores cineastas portugueses de sempre estarão a salvo da degradação e do esquecimento, adequadamente arquivados e protegidos para posterior consulta e exposição.

Por outro lado, não nos choca nada que esse trabalho acabe a ser feito por uma biblioteca privada (a maior do país, segundo rezam as crónicas) e sem que à primeira vista tenha havido interesse ou intervenção de qualquer instituição pública ou do próprio Estado português - de facto, não sabemos se esse pedido alguma vez foi feito por parte dos familiares junto do poder público e acreditamos que os familiares viram nesta solução a melhor saída para tão importantes documentos. O trabalho, aliás, de Pacheco Pereira neste campo tem sido irrepreensível e dá-nos (provavelmente melhor do que ninguém) a garantia que, desta forma, se protege um fundamental pedaço da vida e do trabalho de ambos os realizadores, responsáveis, também eles, por captarem e preservarem os seus pedaços de identidade nacional em obras como Nazaré, Praia de Pescadores, Maria do Mar, A Severa, As Pupilas do Senhor Reitor, Ala-Arriba (Leitão de Barros) ou A Canção de Lisboa (Cottinelli Telmo).

(na imagem uma foto de Ala-Arriba)

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Medo dos vivos


"Se tens medo dos mortos, tens medo dos vivos."

Casa de Lava de Pedro Costa

A crise e os espectadores


São dados interessantes avançados pelo ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) sobre a frequência de espectadores de cinema durante o último semestre deste ano que revelou um aumento de cerca de 89 mil espectadores em relação ao mesmo período do ano passado. Ou seja, ao contrário do que a crise poderia fazer prever, durante os últimos seis meses o público não só não se conteve nas idas ao cinema, como aumentou esse frequência (ainda que ligeira, é certo), facto que deve ser visto como uma tendência muito positiva no contexto sócio-económico em que vivemos. Poderemos parecer presunçosos, mas nada disto nos surpreende: a crise e os cenários de mudança, temos essa convicção, são momentos que normalmente beneficiam o mercado da cultura e o cinema em particular (como se aí as audiências encontrassem, mais do que uma solução de escapismo, uma forma de reflectir a respeito dos seus problemas, das suas inquietudes, das suas angústias).

Contudo, é preciso não esquecer que boa parte deste aumento se deve a um curto conjunto de filmes (não bem blockbusters, na tradicional terminologia do género, embora tenham funcionado no box-office nacional dessa forma) - O Estranho Caso de Benjamin Button de David Fincher, Anjos e Demónios de Ron Howard e Quem Quer Ser Bilionário? de Danny Boyle - e à ascensão que a tecnologia 3D tem vindo a construir no cenário da nossa distribuição, o que não deixa de pôr em causa a diversidade cinematográfica, nomeadamente a "respiração" de diferentes autores e cinematografias (paisagem que se torna mais desértica à medida que vamos saindo dos grandes centros urbanos). Preocupante é ainda a margem de integração do cinema português no mercado que atinge apenas uma quota de 3,6 por cento em comparação com a restante produção estrangeira, e onde Second Life de Alexandre Valente se destaca como o filme mais visto com pouco mais de 90 mil espectadores (isto numa produção nacional falada em grande parte em inglês).

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Tron: Legacy



Recordam-se de Tron? Foi um dos primeiros filmes a reflectir no cinema a ascensão dos vídeo-jogos junto do público juvenil no início da década de 1980 e acima de tudo a explorar o potencial desse mundo como uma entidade virtual e integradora do indivíduo, o que desmancha por completo o mito de "originalidade" que muitos gostam de associar a Matrix dos irmãos Wachowski (filme que não deixa por isso de ter os seus méritos, só não nos digam é que ninguém tinha pensado naquilo muito antes). Na sua época, esta produção da Walt Disney foi uma espécie de último grito no campo dos efeitos especiais (o que não ajudou a evitar que constituísse um fracasso de bilheteira) e vai ter agora uma sequela, intitulada Tron: Legacy que volta a contar com os dois protagonistas originais: Jeff Bridges e Bruce Boxleitner. Num mundo cada vez mais virtual e onde a cultura de vídeo-jogos se tornou absolutamente predominante, este novo projecto vem mostrar como a linguagem computadorizada cada vez mais se confunde com a Sétima Arte (é caso para dizer sobre esta última, se não os consegues vencer, junta-te a eles). Tron: Legacy torna a fazer jus, portanto, da tecnologia inovadora em que se baseia e promete ser diferente (ou por outras palavras, estar "à frente") de tudo o que já se fez até aqui no domínio do 3D.

Remake de Sangue por Sangue por Zhang Yimou!?


Parece improvável, mas está confirmado: a Sony Pictures escolheu o realizador chinês Zhang Yimou para encabeçar o remake de Sangue por Sangue, a obra de estreia dos irmãos Coen, em território chinês. Ainda sem título (o que significa que o original pode não vir a ser utilizado), desta vez a acção deixa de ser o Texas e é transportada para um deserto da China. A coisa promete ter mais espadas e facas do que armas (o que é compreensível no contexto oriental e na tradição do filme de artes marciais a que Yimou recentemente nos habituou), mas o enredo não altera muito e permanece fiel à obra que inaugurou um dos universos mais reconhecidos do cinema norte-americano. Lançado em 1984, Sangue por Sangue é hoje um filme de culto que ajudou a afirmar a dupla Coen como uma das melhores a retratar o lado mais negro da violência, a "idiotice" contemporânea (um dos seus grandes temas) e os fatais equívocos fomentados por alguns dos nossos piores sentimentos: ganância, o ciúme, a inveja e a sede de poder humana (se nos faltar alguma coisa, avisem-nos).

segunda-feira, 27 de julho de 2009

They called him Machete



Era um dos mais hilariantes e sugestivos "fake trailers" a integrar o projecto duplo de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, que do outro lado do Atlântico chegou aos cinemas sob o título de Grindhouse - em Portugal os filmes de ambos os cineastas tiveram distribuição e estreias separadas à semelhança do resto da Europa -, mas mesmo assim pudemos vê-lo em Planeta Terror do realizador mexicano (antes disso já passara pelas salas o magnífico À Prova de Morte). Unidos ou separados, estes filmes eram uma homenagem aos espírito das velhas salas americanas da década de 1970 conhecidas por projectarem durante 24 horas todo o género de produções baratas e violentas que ficariam conhecidas como "exploitation movies" e que marcaram a juventude dos dois realizadores. No meio dos vários trailers, Machete destacava-se pelo seu nível de irrisão e brutalidade, mas a verdade é que aqueles poucos minutos eram um verdadeiro programa, um "esboço" bastante credível a partir de todo aquele universo e uma "ideia" especialmente bem definida no contexto da série B. O sucesso deste junto das audiências foi tanto que convenceu mesmo Robert Rodriguez a seguir em frente e a torná-lo num filme. E aí está Machete, com estreia prevista para 2010, a confirmar o que já estava lá: um filme por inteiro.

Cronenberg, De Lillo & Branco


Paulo Branco vai produzir o próximo filme de David Cronenberg que por si só será uma adaptação do romance Cosmopolis do escritor norte-americano Don De Lillo (frequentemente citado ao lado de Philip Roth como um dos maiores autores da literatura contemporânea naquele país e por várias vezes apontado como candidato ao Nobel) e tem o início do plano de rodagem marcado para 2010 nas cidades de Toronto e Nova Iorque. Cronenberg não se limita a dirigir, é da sua pena que sai ainda o argumento que adapta este livro sobre um multimilionário apanhado no meio do trânsito e da confusão urbana de Manhattan a caminho de um corte de cabelo. Para o papel principal fala-se em Josh Hartnett, mas nada está confirmado.

Tim Burton Gallery


Enquanto a Alice no País das Maravilhas vem e não vem, porque não dar uma olhada ao site oficial de Tim Burton que neste momento nos dá a oportunidade de observar, pelo olhar e pelo passo do "encantador" Stain Boy, uma galeria dos seus desenhos originais? Prometida para o próximo Outono (só podia ser) está uma edição de luxo com mais de um milhar de alguns destes originais esboços das personagens do realizador norte-americano numa publicação que conterá mais de 400 páginas e inúmeras ilustrações do seu trabalho nesta área, com texto e contributos de gente tão ilustre (e imaginamos fiel) como Martin Landau, Winona Ryder, Christopher Lee, Danny DeVito, a esposa Helena Bonham-Carter, o mago dos efeitos especiais Ray Harryhausen ou o produtor Richard Zanuck. A galeria é, no mínimo, irresístivel (e onde se inclui a imagem que vemos acima).

domingo, 26 de julho de 2009

Alice no país das maravilhas by Tim Burton



Se já andávamos a salivar só com a ideia de ver um nome como Tim Burton associado à adaptação ao cinema do clássico da literatura de Lewis Carrol, agora temos uma amostra real do que pode vir aí: o trailer de Alice no País das Maravilhas confirma que o realizador norte-americano é o nome (e o talento) certo para dar a esta versão cinematográfica o tratamento e a credibilidade adequados a um universo que à partida seria para muitos outros impossível concretizar. O amigo (e porque não dizê-lo: alter-ego) Johnny Depp anda por lá mais uma vez, naturalmente, à semelhança da esposa Helena Bonham-Carter ou de repetentes como Alan Rickman ou Christopher Lee, sem esquecer Danny Elfman, que mais uma vez assina a banda sonora. Já no papel de Alice temos a desconhecida Mia Wasikowska, mas o que promete ainda ocupar um enorme plano de destaque é todo um mundo reinventado por Tim Burton que, ao contrário do negro e genial-regresso-à-sua-melhor-forma Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street, chega agora povoado de cores e personagens surreais e enigmáticas. Alice como nunca a vimos até aqui (e Burton "as the right eye for it").

sábado, 25 de julho de 2009

Um filme puzzle


"É um filme puzzle. E faltam peças. É uma obra inacabada. Sabe, nos puzzles há sempre a caixa com o desenho e as pessoas podem copiar o desenho. Mas o verdadeiro desafio para os puros e duros do puzzle é que não se veja sequer o desenho. Procura-se o que se vai encontrar. É isso o filme: um puzzle de que não temos o modelo, porque o modelo constrói-se enquanto se faz o filme, com a montagem. No início é como se faltassem peças, e quanto ao fim não sabemos se o desenho é uma paisagem ou é uma figura humana... nem eu mesma sei, porque a paisagem da praia é dominante na minha cabeça como a referência, como a mais bela paisagem do mundo. Como a referência absoluta. O céu, o mar, a praia, não há mais nada assim no universo. E a beleza de ter um horizonte que é sempre horizontal."

Agnès Varda em entrevista ao suplemento Ípsilon de 24 de Julho sobre o seu último filme: As Praias de Agnès

sexta-feira, 24 de julho de 2009

You'll never walk alone



A maioria habituou-se a associar o tema ao "hino" do Liverpool FC (quando a verdade é que este apenas foi apropriado em 1963 pelos adeptos de Anfield Road), mas é ao musical Carrossel da dupla Rodgers e Hammerstein que ele realmente pertence (e isto já ninguém se lembra): You'll Never Walk Alone não veio das bancadas, veio dos palcos e do cinema. E desta bela, triste e redentora cena do musical de Henry King adaptado com o mesmo título ao cinema em 1956, onze anos depois da estreia na Broadway.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Sexo no cinema (Segundo capítulo)


Está aí mais um ciclo de cinema da *aurora no CCC das Caldas da Rainha: Sexo: O Último Tabu pode ser entendido como o segundo capítulo de uma viagem que começou no passado mês de Maio com Escandaloso (um programa que revitalizava algumas das grandes obras-choque da década de 1970 - embora não só, por lá andou também Lua de Mel, Lua de Fel de Polanski - a tocar o delicado tema da sexualidade no grande ecrã) e que se inicia já no próximo dia 3 de Agosto estendendo-se até ao final do mês (calha mesmo no último dia, a 31, decorrendo sempre às segundas-feira, pelas 21h 30, como de costume, no Pequeno Auditório). São cinco obras que desenham um pequeno retrato de como o sexo foi abordado por alguns realizadores consagrados na última década (e estamos a falar de Patrice Chéreau, Michael Winterbottom, John Cameron Mitchell, Catherine Breillat e Jean-Claude Brisseau) e a forma como estes nomes se aplicaram em abordar um das últimas grandes barreiras do cinema: a transposição para a tela do sexo explícito como mais um instrumento ao serviço da narrativa.

É verdade que a relação do cinema com o sexo é muito antiga (e sabemos como nem mesmo a censura conseguiu apagar as vezes em que o sexo andou pelo cinema sem se mostrar, mas fazendo-se sentir, a latejar em todos os poros da película, pulsão da história e das suas personagens - e um dia, está prometido, vamos fazer um ciclo dedicado a isso mesmo: os filmes "sexuais" que no fundo nunca mostraram o "sexo" tal como o conhecemos, apesar de darmos com ele onde quer que olhássemos) e é igualmente verdade que haveria mais filmes a incluir para além destes que teremos aqui, mas julgamos que o que vamos ver já oferece uma boa amostra de tudo o que recentemente alguns autores consagrados arriscaram nessa área. Não são brincadeiras "pornográficas" nem visões "erotizadas", são incursões sérias num campo que sempre sofreu de preconceitos artísticos e que com estas obras viu abertas novas possibilidades para a integração do sexo na Sétima Arte.

Não vamos revelar toda a agenda - a qual pode ser consultada no site do CCC das Caldas da Rainha e brevemente no site oficial da *aurora - nem desenvolver todos os contextos e as circunstâncias que envolvem cada um dos filmes; a ideia é só abrir um pouco o apetite para mais esta aposta arrojada de um director que dá pelo nome de Carlos Mota e que connosco acredita que não há temas tabu no mundo da sala de cinema, principalmente quando é o próprio cinema a mostrar-nos a "verdade" que existe por trás das relações humanas e da sua intimidade, onde o sexo, como qualquer outro factor da vida, pode ter um papel preponderante a desempenhar.

(na foto acima: os actores Mark Rylance e Kerry Fox numa cena de Intimidade de Patrice Chéreau)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Robby, the robot


É um dos mais emblemáticos exemplos da longa linhagem de robôs criados pela História do Cinema: Robby, the Robot apareceu pela primeira vez no inevitável clássico de ficção científica de Fred M. Wilcox O Planeta Proibido (1956) e depressa conquistou as atenções e as simpatias dos espectadores desse tempo (o seu nome chega mesmo a aparecer ao lado dos restantes actores no genérico do filme com semelhante destaque). Nesta produção inspirada pela peça de Shakespeare A Tempestade, Robby representa o papel de um voluntarioso e milagroso robô que, além de dominar na perfeição centenas de línguas e dialectos (e não é só aqui que percebemos a influência que esta figura teve em sagas como a Guerra das Estrelas e nomeadamente na personagem C3PO), consegue igualmente recriar qualquer tipo de produto ou comida através de uma simples amostra molecular (um daqueles sonhos científicos que continua a perseguir-nos, diríamos).

Mas Robby é ainda neste filme uma das personagens mais "humanizadas" em cena, o que cria um notório contraste com a enigmática e rígida pose civilizada do seu criador Dr. Morbius (Walter Pidgeon), e que ao mesmo tempo explica a cumplicidade que desenvolve com Cookie, um cozinheiro amante de uísque e um dos mais divertidos tripulantes da nave que aterra no planeta Altair para resgatar os possíveis sobreviventes de uma anterior missão falhada. Algo que não fica por aí: Robby contém também um "comando" (uma espécie de lei moral) que o impede de atentar contra qualquer ser humano (facto que contribuirá perto do final do filme para a compreensão dos mistérios em causa na narrativa), o que revela a dimensão pacifista que a tecnologia parece aqui simbolizar. Inspirado no conto de Isaac Asimov Eu, Robot (obra recentemente adaptada ao cinema por Alex Proyas com Will Smith no papel principal), a personagem de Robby acabaria por entrar em diversas produções cinematográficas e televisivas, entre as quais The Invisible Boy (1957) de Herman Hoffman ou a série de Rod Serling A Quinta Dimensão (The Twilight Zone, 1959 - 1964).

Em O Planeta Proibido, Robby foi operado por Frankie Darro e a sua voz pertencia ao actor Marvin Miller. Já em 2004, a personagem entrou para o Robot Hall of Fame e depois de vários restauros o fato original foi adquirido pelo realizador William Malone, a quem ainda pertence. Na foto acima, podemos vê-lo ao lado da actriz Anne Francis que representou o papel de "Alta" Morbius no filme de Wilcox (ver a rubrica Cartazes de Sempre na tabela ao lado).

sábado, 18 de julho de 2009

Gene Kelly e o seu duplo



Em Cover Girl (1944) de Charles Vidor, Gene Kelly tem uma das sequências de dança mais memoráveis que lhe conhecemos; não tanto pelo aparato coreográfico ou pela exuberância do cenário que em muitas alturas construiu grande parte da sua reputação de dançarino no cinema, mas antes pelo equilíbrio e pela profundidade dramática que dele fazem parte, algo muito perto do domínio do conceptual, com uma dimensão admiravelmente moderna e contemporânea. Na verdade, trata-se de uma espécie de solo transformado em "dueto" e "duelo" (reparem-se como os dois termos cujos significados à primeira vista contrários podem aqui fazer sentido juntos) onde Kelly se debate com a sua imagem duplicada no reflexo das várias montras da rua que percorre e que por sua vez acaba por ganhar vida e confrontá-lo.

Além de um jogo entre a sua personagem e o seu duplo, que sob as mais diversas perspectivas pode ser entendido como a expressão de um conflito entre um homem e a sua consciência, o seu ego, digamos, ilustração ainda de uma divisão entre aquilo que naquele momento lhe dita o coração e a razão, esta é a metáfora de um homem dividido, no fundo, pela profusão de sentimentos contraditórios que o inundam em relação ao amor que sente por uma Rita Hayworth cada vez mais distante e reclamada pelo clamor mediático em que está envolvida (sim, é ela a "cover girl" a que o título se refere, sugada pelo mundo das celebridades e indiferente à paixão sensível, frágil e insegura de Gene Kelly).

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Meridiano de sangue


Andamos a ler Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste do escritor norte-americano Cormac McCarthy e estamos a tentar imaginar como é aquilo tudo vai resultar no grande ecrã: um mundo de violência, caos, sangue, obscuridade, universo que arriscaríamos chamar de pré-apocalíptico (isto de um autor que muitos também chamam de pós-apocalíptico) já que estamos no tempo do "western" com todo o desencanto e a obscuridade que a imagem da fundação dos Estados Unidos jamais nos poderia dar (e McCarthy explora o terror, não sabemos se é a palavra certa, mas certamente o Mal aos limites da sua própria insustentabilidade). E o que mais nos perturba é a dimensão estética e formal, absolutamente "bela" e rigorosa, que o desenho do horror e do ódio entre os homens (assim como daquilo que estes podem fazer uns aos outros) assume através da sua escrita.

E por outro lado, percebemos porque este livro interessa ao cinema, estamos sem dúvida perante uma peça profundamente visual, onde o texto de McCarthy quase nos dá a cheirar o sangue e a morte provocados por aquele grupo de homens em que se centra o romance. Os irmãos Coen já nos deram um exemplo de como o mundo do escritor pode resultar no cinema com Este País Não é Para Velhos e em pós-produção está ainda a versão cinematográfica de A Estrada dirigida por John Hillcoat com Viggo Mortensen e Kodi Smit-McPhee. Quanto a Meridiano de Sangue tem à frente da sua adaptação Todd Field (realizador de Vidas Privadas) depois de Ridley Scott também ter passado pelo projecto. A interrogação, no entanto, mantém-se: como é que este vai conseguir traduzir todo aquele pesadelo e negrume, aquelas autênticas pinturas de carne viva, cadáveres esquartejados, crianças violadas e escalpes ensaguentados sem que nós, os espectadores, desviemos os olhos?

Caixa Jacques Tourneur


Temos andado a falar por aqui de Jacques Tourneur (mais por causa do seu western Amor Selvagem do que pelo motivo que nos traz agora a este post) e nem de propósito temos agora aí uma caixa DVD especialmente editada pela Costa do Castelo e a Fnac que nos devolve alguns dos seus títulos mais emblemáticos (são obras absolutamente obrigatórias para o entendimento da carreira deste realizador também filho do cineasta francês Maurice Tourneur, nome que se notabilizou na era do mudo em Hollywood e que trouxe o filho para a América e para os bastidores do cinema com a precoce idade de dez anos).

Numa videoteca ideal, esta caixa seria de presença obrigatória, mas também sabemos que a crise não se compadece com a cinefilia, e por isso avisamos que os títulos podem sempre ser adquiridos individualmente (isto para quem se vir obrigado a "decepar" o desejo de obter um pedaço da filmografia do realizador de origem francesa ou a ter de completá-la paulatinamente ao longo do tempo).

É também com um dos filmes que completam esta edição que aproveitamos para inaugurar neste singelo blogue uma rubrica nostálgica destinada a recordar alguns dos cartazes mais notáveis da História do Cinema (ver tabela ao lado, sob o título Cartazes de Sempre), celebrando desta forma a imagem gráfica que muitos destes filmes nos deixaram através das suas campanhas de promoção, cuja honra de estreia cabe então a O Arrependido (Out of the Past, 1947).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Canyon passage again! (just a quote)


"Cada homem escolhe os seus deuses."

(quem o diz é a personagem de Dana Andrews logo no início do filme e sob uma chuva torrencial: e achamos que tem toda a razão)

doclisboa 2009 vs. RTP 2


Mais cedo ou mais tarde o verniz tinha de estalar, mas o que nunca imaginaríamos era que o gesto partisse de forma tão frontal e assumida da parte do doclisboa que desde há uns anos para cá detinha com a RTP 2 uma relação estratégica e institucional bastante importante para a mediatização do festival, e acima de tudo, fundamental para lançar e promover o documentário português, assim como os seus novos valores, no espaço público televisivo nacional. Ora, quem não parece ter estado à altura desse compromisso foi precisamente o canal que, como sempre nos foi evidente, negligenciou o potencial português originado pelo doclisboa (e falamos obviamente das diversas obras e talentos que nos últimos anos o certame acabou por divulgar no contexto do cinema nacional), optando na sua programação, e à revelia daquilo que seria a sua verdadeira vocação, por integrar os habituais documentários formatados de produção estrangeira sobre vida animal ou tribos perdidas no Pacífico Sul que, não obstante ocuparem um espaço nobre que nem sequer uma oportunidade ou uma brecha abriam ao documentarismo nacional, ainda tinham o descaramento de serem constantemente repetidos (havia programas por vezes repetidos na própria semana e houve alturas em que chegámos a ver o mesmo episódio em dois dias seguidos).

Quanto a documentários nacionais, nem vê-los, e quando apareciam, lá estavam eles escondidos na grelha televisiva a altas horas da madrugada e em muitos momentos sem estarem devidamente anunciados nem conterem qualquer informação associada. E assim o doclisboa pôs termo à parceria que mantinha com a RTP 2, o que não deixa de ser um acto de imensa coragem face ao monopólio que a televisão e o Estado detém num país como o nosso e sabendo tudo aquilo que o próprio festival pode perder num contexto mediático que arrisca tornar-se-lhe avesso. O anúncio aconteceu ontem, dia 15, quarta-feira, durante uma conferência de imprensa realizada na Culturgest destinada a revelar os primeiros pormenores da programação prevista para a sétima edição do doclisboa que se realizará entre os dias 15 e 25 de Outubro, e não deixa de ser uma "bomba". Os motivos que levaram à ruptura estão claramente expostos no dossier de imprensa avançado pela Apordoc, a associação responsável pela organização do doclisboa e principal defensora do documentário em território nacional, razões que vale a pena aqui enunciar e exemplificam bem o estado a que as coisas chegaram:

"As televisões públicas são na Europa e no mundo as principais entidades financiadoras do documentário.

(...)

As televisões públicas de cada país co-produzem, compram e transmitem centenas de documentários todos os anos. O financiamento e a exibição de documentário faz parte dos deveres cívicos de uma televisão. Faz parte da sua razão de ser enquanto produtora de património e enquanto desejável formadora do grande público.

Infelizmente, em Portugal, o serviço público de televisão não assegura estas funções. Existem dois canais públicos de televisão, de costas voltadas para o cinema e para o documentário. O número de horas que exibem de documentário é insignificante. O orçamento que atribuem à compra e à co-produção (nacional e internacional), bem como a programação que fazem, são ridículos. Os valores investidos são menos do que um décimo do que seria necessário a um serviço público de televisão.

(...)

Em Portugal, a RTP 2, que se intitula sem ironia «A Estação dos Documentários» (e afirma publicamente que é das estações que transmite mais documentário na Europa!), transmite – de forma irregular e sem nexo – pouco mais do que um documentário por semana (na maior parte dos casos os documentários nem sequer são anunciados nas revistas de televisão. Lê-se apenas “documentário a programar”).

Para além do desinteresse manifesto dos governantes pelo assunto, pouco compreendemos quando falamos com os directores de programas. Num primeiro tempo advogam ter a melhor televisão da Europa. Depois de pressionados, apresentam-nos duas respostas para a ausência de documentários: a falta de orçamento e o desinteresse das audiências. Ambas as respostas são discutíveis.

No que diz respeito às audiências, a justificação é inaceitável. O dinheiro investido pelo Estado na RTP deveria permitir o enriquecimento (espiritual) dos cidadãos. Em diversos países europeus com televisões de qualidade (reconhecidas por todos como tal), as sondagens apontam o documentário como o tipo de programa mais bem pontuado pelas audiências.

Aproveitando a ignorância que o público e os jornalistas têm do que são canais públicos de televisão de referência (YLE, TSR, STV, TV3 Cataluña, RTBF, ZDF, WDR, France 5), a direcção da RTP permite-se fazer declarações sobre a sua programação, comparada a outras estações europeias, que não têm qualquer gota de verdade. São pura fraude.

O doclisboa e a Apordoc têm relações estreitas com os canais de televisão europeus que co-produzem, compram e exibem documentários. O doclisboa e a Apordoc sabem muito bem o que é um canal de televisão que se interessa por documentários. A RTP definitivamente não o é.

(...)

Consideramos que uma parceria com um serviço público de televisão semelhante torna-se indecorosa para nós. O que se passa na RTP há décadas é da ordem do crime. É um crime contra o património e um crime contra os cidadãos."

São palavras fortes, portanto, as que temos a marcar o próximo doclisboa, que no entanto não nos devem levar a fugir ao essencial: a qualidade da programação a que nos habituou e que promete para a próxima edição óptimas novidades. Entre elas, temos uma retrospectiva da obra de Jonas Mekas, considerado uma lenda viva do cinema independente norte-americano, cuja presença em Lisboa é co-patrocinada pelo Museu Reina Sofia de Madrid (perde-se uma parceria, mas ganha-se outra) e dará oportunidade a assistir a uma Masterclass dada pelo realizador na Culturgest a partir de excertos dos seus filmes. Também os Balcãs estarão em destaque através de um secção intitulada Balcãs em Foco que procura dar a conhecer a cinematografia dessa região e levar-nos a compreender as complexidades de um território habitado por vários povos, países e religiões em conflito. Love Stories trará ainda uma programação especial destinada a revelar histórias de amor únicas, especialmente registadas no campo do documentário. Mantêm-se as secções pilares do festival (Competição Internacional, Investigações, Competição Nacional, Riscos e Heart Beat) com uma ligeira diferença: este ano haverá mais um prémio na Competição Internacional, agora dividida em longas (mais de 60 minutos), médias (30 a 60 minutos) e curtas metragens (menos de 30 minutos).

Canyon passage (1946)


Quando Jacques Tourneur realizou o western Amor Selvagem (Canyon Passage, 1946) já tinha no currículo filmes como A Pantera (Cat People, 1942), Zombie (I Walked with a Zombie, 1943) ou O Homem Leopardo (The Leopard Man), obras pelas quais seria mais relembrado e que ainda hoje o estabelecem como um dos cineastas de maior culto no domínio do género de terror e suspense (isto sem esquecer que foi um dos principais nomes a dar um novo sentido à dimensão mais negra e psicológica explorada pelo cinema). À superfície, Amor Selvagem parece estar bastante longe disso: mais do que um western típico de Hollywood (que apesar de tudo não deixa de explorar algumas das faces mais obscuras da personalidade humana) é um veículo que parece conter um lado "solar", ou digamos "colorful" (o uso das cores e dos seus contrastes nesta produção é um dos seus traços mais peculiares) que à primeira vista poderia indiciar alguma estranheza face ao que conhecemos de Tourneur (o filme venceu mesmo um Óscar para Melhor Canção Original e não deixa de ser uma tentativa de piscar o olho ao grande público).

Mas desenganemo-nos, esta adaptação do romance homónimo de Ernest Haycox acaba por explorar no meio desse "arco-íris" (o mesmo "arco-íris" que a dada altura serve de metáfora para a busca do pote de ouro em que os habitantes de uma pequena cidade mineira se vêem envolvidos) as diversas fragilidades humanas com que cada uma das suas personagens se debate; e se em cada uma delas resiste uma ideia de felicidade, de concretização dos seus mais pequenos e íntimos desejos (e que passam pela ideia de uma "vida melhor" associada ao pioneirismo americano tanto como pela pura ganância ou pela sede de poder que vai a reboque desse movimento histórico) a história resolve devolver o reverso da medalha, ou seja, as consequências que certos actos, ou porque não dizê-lo, desejos, podem originar, quebrando aquilo que é a "ilusão" de uma comunidade em harmonia e equilibrada.

Não espanta, portanto, que no final a cidadezinha de Jacksonville se veja reduzida a cinzas (depois de atacada pelos índios e na sequência de uma série de circunstâncias que aqui nos abstemos de relatar), ao tal preto e branco pelo qual Tourneur se tornaria tão famoso e que no seu caso era o verdadeiro espelho das inquietações reveladas pelas suas personagens e pelas suas histórias. Como se o realizador não conseguisse, no fundo, fugir a essa evidência estilística e formal que o notabilizou, e acima de tudo, cumprisse aquela que foi sempre a sua análise da condição humana: vertiginosamente "negra" e caótica. Um ano depois deste filme chegaria O Arrependido (Out of the Past, 1947), por muitos considerado o seu maior filme e um modelo na construção do film noir como género, revelando ainda ao mundo o "monstro" Robert Mitchum no seu primeiro grande papel.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Inglorious basterds


Sabemos que Quentin Tarantino é provavelmente o maior reciclador de géneros populares no contexto do cinema contemporâneo e que a prová-lo, mais uma vez, temos aí a ansiada estreia de Inglorious Basterds, o seu filme mais recente que promete trazer para o grande ecrã uma nova releitura do clássico filme de guerra. Como também tem sido habitual no cineasta norte-americano, o filme não fica por aí e integra ainda muitas influências retiradas do western-spaghetti (o que já tinha acontecido de forma muito notória em Kill Bill): Tarantino terá chegado mesmo a dizer que esta nova produção inspirada por uma obra italiana de finais dos anos 1970, intitulada Quel Maledetto Treno Blindato (em inglês: Inglorious Bastards, título que o realizador manteve com um ligeiro erro premeditado - o Bastards original passou a Basterds - e que não se trata de um remake, mantendo apenas a mesma premissa inicial), está mais perto de um western-spaghetti que usa descaradamente a iconografia da II Grande Guerra do que porventura de um filme de guerra.


Inglorius Basterds estreou no passado mês de Maio na sessão de abertura do Festival de Cinema de Cannes e fez ainda parte da competição oficial do certame, garantindo ao cinema norte-americano o único prémio dessa edição: a Palma de Ouro de Melhor Actor para Christoph Waltz. A data prevista para a sua estreia nos Estados Unidos é o dia 21 de Agosto e já se fala numa prequela, embora nada esteja garantido já que os recentes falhanços de bilheteira de Tarantino e a divisão da crítica na Côte d'Azur estão longe de auspiciar qualquer certeza quanto a esse projecto (existe ainda a hipótese de o material reunido dar origem a uma série televisiva). Portanto, tudo dependerá de como correrão os números de audiência nas salas, mas para já o que se sabe é que só o guião custou a Tarantino mais de uma década de trabalho e que talvez nunca como nesta história o realizador terá dado tanto importância a cada página e a cada diálogo (o filme tem o maior número de personagens do que qualquer outro na sua carreira). Quanto ao "plot", duas linhas narrativas convergem: a primeira segue um grupo de judeus americanos cuja missão passa por abater todos os nazis que puderem (e pelo caminho recolher os seus escalpes), a segunda passa por uma jovem judia que procura vingar a morte da família às mãos de um obscuro coronel da SS conhecido como "O Caçador de Judeus".


De qualquer modo, um dos aspectos que vale a pena observar está na "iconografia" afirmada pela tradição do filme de guerra aqui ilustrada através de alguns dos melhores exemplos que o cinema nos deixou; para isso basta até olhar para a imagem dos cartazes de alguns dos filmes com maior êxito e que na verdade tratam de evocar alguns dos temas e das fórmulas pretensamente glosadas pelo último filme de Tarantino (em todos eles tudo parece começar por um plano audacioso de infiltração atrás das linhas inimigas). São os casos de Doze Indomáveis Patifes (1967) de Robert Aldrich, que além de Lee Marvin, Charles Bronson, Jim Brown, Trini Lopez, Telly Savalas, Donald Sutherland ou Clint Walker, contém no elenco o também realizador John Cassavetes (talvez seja desta pequena lista a obra que maior culto granjeie ainda hoje na memória dos saudosos do género). Contudo, é preciso não esquecer igualmente produções como O Desafio das Águias (1968) de Brian C. Hutton, com Richard Burton e Clint Eastwood ou O Voo das Águias (1976) de John Sturges (é aliás o último filme deste realizador igualmente conhecido pelos seus westerns), uma obra que dá curiosamente protagonismo ao lado nazi num enredo onde um comando alemão entra em território britânico na tentativa de raptar o líder Winston Churchill.


Tudo obras a que o último filme de Tarantino não deixa de prestar homenagem já que serviram (e muito) para construir uma ideia de filme de guerra baseado nas mais densas e arrojadas operações especiais que se conhecem dessa época e na atmosfera obscura e complexa formada pelas várias teias de espionagem e contra-espionagem que fizeram do suspense e da acção explosiva colocados em cena uma forma de encantamento cinematográfico. Se alguém quiser fazer o trabalho de casa antes de ver Inglorious Basterds, e dessa forma poder brincar ao "who's who" das referências postas em campo a que Tarantino nos habituou , fique a saber que todos estes filmes são de revisão obrigatória num pertinente e saudável exercício de memória ao serviço do cinema do presente.

Masculino-Feminino (Citação 3)

É um dos diálogos de Godard de que mais vezes me recordo e durante muitos anos (ou seja, desde que o vi pela primeira vez numa dessas gloriosas sessões da RTP2 durante a década de 1990) nunca me esqueci desta ideia fundamental e tão lúcida com que a personagem de Chantal Goya em Masculino-Feminino confronta um surpreendido Jean-Pierre Leaud: cada um de nós é o centro do mundo. Sim, tudo gira à nossa volta e se não gira a verdade é que gostaríamos que assim fosse. Nesse desejo de sermos vistos, compreendidos, amados, percebemos portanto que não podemos estar sozinhos, apesar da solidão ser uma condição que nos acompanha sempre: pois nunca seremos vistos, compreendidos e amados tão absolutamente como gostaríamos que acontecesse. Somos o centro do mundo e nisso estaremos eternamente sozinhos.

Chantal Goya: O que é para ti o centro do mundo?

Jean-Pierre Leaud: O centro do mundo?

CG: Sim.

JPL: Tem piada, nunca tínhamos falado e quando falamos, fazes-me uma pergunta espantosa.

CG: Eu acho que é uma pergunta normal.

JPL: É verdade.

CG: Vá lá, responde.

JPL: Bom, acho que é o amor.

CG: Tem piada, eu ter-te-ia dito: sou eu. (pausa) Parece-te estranho? Não pensas que és o centro do mundo?

JPL: De certa maneira, sim.

CG: De que maneira?

JPL: De viver, de existir, de vermos com os nossos próprios olhos, de falarmos com a nossa boca, de pensarmos com a nossa cabeça.

CG: Achas que podemos viver sozinhos? Sempre sozinhos?

JPL: Não, não creio que seja possível. Não se pode viver assim, era o que eu te dizia. Sem ternura...

Masculino-Feminino de Jean-Luc Godard

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Masculino-Feminino (Citação 2)


"Apercebo-me que temos todo o poder sobre as nossas ideias que nada valem e nenhum sobre as emoções que são tudo."

Masculino-Feminino de Jean-Luc Godard

Masculino-Feminino (Citação 1)


"Dêem-nos uma televisão e um automóvel, mas livrai-nos da liberdade."

Masculino-Feminino de Jean-Luc Godard

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O desprezo


Baseado no romance homónimo do escritor italiano Alberto Moravia, O Desprezo (1963) de Jean-Luc Godard é não só a história de decadência de um casamento, cujo casal é aqui interpretado por Brigitte Bardot e Michel Piccoli, mas também o retrato das relações muitas vezes convulsas entre o desejo e o ideal artístico de um realizador para um filme e a visão comercial do produtor face a esse mesmo objecto. Este é um clássico do cinema que combina os dois temas com uma harmonia formal e estética absolutamente ímpares, onde a poética e a profundidade sentimental reveladas estão enraizadas no lado mais profundo da filosofia e da literatura (para além da referência mais óbvia a Homero e à sua Odisseia, precisamente a obra que as personagens tentam adaptar e produzir, ainda há referências a Dante, Bertold Brecht ou Friedrich Holderlin), sem que fique de lado uma visão tocante da complexidade das relações humanas.

No filme participa igualmente Fritz Lang, num papel onde faz de si próprio (é ele o cineasta incumbido de levar avante a hercúlea tarefa de concretizar a adaptação da Odisseia) e cuja presença, como se percebe, foi uma forma de Godard prestar homenagem tanto à figura e à carreira do cineasta alemão como a uma certa memória do cinema (nomeadamente a dos grandes autores perfilhados por Hollywood). Em muitos aspectos, O Desprezo reflecte também sobre o momento pessoal e artístico em que Godard se encontrava: a obra foi a sua maior e mais cara produção de sempre, e nela as personagens traçam muitas semelhanças com as pessoas com quem convivia então (a actriz e ex-mulher Anna Karina, o distribuidor Joseph E. Levine e o produtor Carlo Ponti são os exemplos mais óbvios). A ideia de adaptar o livro de Moravia partiu de Godard em resposta ao desafio de Ponti em colaborarem num filme e para os papéis chegaram a estar previstas duplas como Kim Novak e Frank Sinatra (a primeira escolha de Godard: ambos recusaram) ou Sophia Loren e Marcello Mastroianni (propostos por Ponti: desta vez seria Godard a recusar).

Birgitte Bardot acabou por ser escolhida pelas razões mais óbvias: a sua beleza e sensualidade, virtudes que são rapidamente exploradas na sequência inicial numa referência que não deixa de ser irónica e crítica da exploração da nudez no cinema durante esses anos - além do claro paralelo que desenha à imagem mais famosa da actriz francesa em ...E Deus Criou a Mulher (1956) -; a cena não estava sequer prevista inicialmente e apenas foi filmada por insistência dos produtores. Rodado em Itália, nomeadamente em Roma, nos estúdios da Cinecittá e na ilha de Capri em Casa Malaparte, um dos momentos mais memoráveis decorre em interiores, no seio da apartamento onde BB e Piccoli conversam, discutem e reconciliam-se numa série de cenas que os conduz à exploração desse próprio espaço. É prodigiosa ainda a banda sonora composta por Georges Delerue (por muitos considerado o "Mozart do Cinema") que acompanha a queda deste casal, ou mais evidentemente, a distância que se vai criando entre eles, tão vasta e tão imensa como a de Ulisses e Penélope.

Karl Malden (1912 - 2009)


Mais um pedaço de história do cinema norte-americano que se esboroa: Karl Malden, actor mais conhecido pelas suas interpretações em vários filmes do mestre Elia Kazan, entre eles Há Lodo no Cais (1954), que lhe valeu uma nomeação para o Óscar de Melhor Actor Secundário, e Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), que antes já lhe valera a estatueta propriamente dita na mesma categoria (em ambos os filmes ao lado do "monstro" Marlon Brando), faleceu na sua casa de Los Angeles aos 97 anos de idade.

Famoso pelo seu nariz proeminente e por uma voz grave e intensa, Malden dava às suas personagens uma essência e uma substância fora de comum, capaz de assegurar em cada papel que interpretava a presença de alma e corpo que tais construções dramáticas exigiam: sabíamos estarmos ali perante "homens" de carne e osso, mas não "homens" quaisquer (ou seja, não pressentíamos ali o habitual estereótipo de masculinidade que muitas vezes Hollywood nos presenteava), antes seres complexos e frontais.

Entrou em muitos outros filmes que o ajudaram a afirmar-se na posição de um dos actores norte-americanos mais respeitáveis de sempre: The Kiss of Death (1947) de Henry Hathaway, Eu Confesso (1953) de Alfred Hitchcock, O Grande Combate (1964) de John Ford, Patton (1970) de Franklin J. Schaffne, sem deixar de referir Boomerang! (1947) e Babydoll (1956), ambos de Elia Kazan (o cineasta que talvez melhor tenha retirado de si toda a carga dramática que encerrava). Mais tarde, durante a década de 1970, fez dupla com Michael Douglas na famosa série de televisão The Streets of San Francisco. E entre 1989 e 1993 ainda presidiu à Academia das Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.