quinta-feira, 2 de julho de 2009

O desprezo


Baseado no romance homónimo do escritor italiano Alberto Moravia, O Desprezo (1963) de Jean-Luc Godard é não só a história de decadência de um casamento, cujo casal é aqui interpretado por Brigitte Bardot e Michel Piccoli, mas também o retrato das relações muitas vezes convulsas entre o desejo e o ideal artístico de um realizador para um filme e a visão comercial do produtor face a esse mesmo objecto. Este é um clássico do cinema que combina os dois temas com uma harmonia formal e estética absolutamente ímpares, onde a poética e a profundidade sentimental reveladas estão enraizadas no lado mais profundo da filosofia e da literatura (para além da referência mais óbvia a Homero e à sua Odisseia, precisamente a obra que as personagens tentam adaptar e produzir, ainda há referências a Dante, Bertold Brecht ou Friedrich Holderlin), sem que fique de lado uma visão tocante da complexidade das relações humanas.

No filme participa igualmente Fritz Lang, num papel onde faz de si próprio (é ele o cineasta incumbido de levar avante a hercúlea tarefa de concretizar a adaptação da Odisseia) e cuja presença, como se percebe, foi uma forma de Godard prestar homenagem tanto à figura e à carreira do cineasta alemão como a uma certa memória do cinema (nomeadamente a dos grandes autores perfilhados por Hollywood). Em muitos aspectos, O Desprezo reflecte também sobre o momento pessoal e artístico em que Godard se encontrava: a obra foi a sua maior e mais cara produção de sempre, e nela as personagens traçam muitas semelhanças com as pessoas com quem convivia então (a actriz e ex-mulher Anna Karina, o distribuidor Joseph E. Levine e o produtor Carlo Ponti são os exemplos mais óbvios). A ideia de adaptar o livro de Moravia partiu de Godard em resposta ao desafio de Ponti em colaborarem num filme e para os papéis chegaram a estar previstas duplas como Kim Novak e Frank Sinatra (a primeira escolha de Godard: ambos recusaram) ou Sophia Loren e Marcello Mastroianni (propostos por Ponti: desta vez seria Godard a recusar).

Birgitte Bardot acabou por ser escolhida pelas razões mais óbvias: a sua beleza e sensualidade, virtudes que são rapidamente exploradas na sequência inicial numa referência que não deixa de ser irónica e crítica da exploração da nudez no cinema durante esses anos - além do claro paralelo que desenha à imagem mais famosa da actriz francesa em ...E Deus Criou a Mulher (1956) -; a cena não estava sequer prevista inicialmente e apenas foi filmada por insistência dos produtores. Rodado em Itália, nomeadamente em Roma, nos estúdios da Cinecittá e na ilha de Capri em Casa Malaparte, um dos momentos mais memoráveis decorre em interiores, no seio da apartamento onde BB e Piccoli conversam, discutem e reconciliam-se numa série de cenas que os conduz à exploração desse próprio espaço. É prodigiosa ainda a banda sonora composta por Georges Delerue (por muitos considerado o "Mozart do Cinema") que acompanha a queda deste casal, ou mais evidentemente, a distância que se vai criando entre eles, tão vasta e tão imensa como a de Ulisses e Penélope.

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