quinta-feira, 16 de julho de 2009

doclisboa 2009 vs. RTP 2


Mais cedo ou mais tarde o verniz tinha de estalar, mas o que nunca imaginaríamos era que o gesto partisse de forma tão frontal e assumida da parte do doclisboa que desde há uns anos para cá detinha com a RTP 2 uma relação estratégica e institucional bastante importante para a mediatização do festival, e acima de tudo, fundamental para lançar e promover o documentário português, assim como os seus novos valores, no espaço público televisivo nacional. Ora, quem não parece ter estado à altura desse compromisso foi precisamente o canal que, como sempre nos foi evidente, negligenciou o potencial português originado pelo doclisboa (e falamos obviamente das diversas obras e talentos que nos últimos anos o certame acabou por divulgar no contexto do cinema nacional), optando na sua programação, e à revelia daquilo que seria a sua verdadeira vocação, por integrar os habituais documentários formatados de produção estrangeira sobre vida animal ou tribos perdidas no Pacífico Sul que, não obstante ocuparem um espaço nobre que nem sequer uma oportunidade ou uma brecha abriam ao documentarismo nacional, ainda tinham o descaramento de serem constantemente repetidos (havia programas por vezes repetidos na própria semana e houve alturas em que chegámos a ver o mesmo episódio em dois dias seguidos).

Quanto a documentários nacionais, nem vê-los, e quando apareciam, lá estavam eles escondidos na grelha televisiva a altas horas da madrugada e em muitos momentos sem estarem devidamente anunciados nem conterem qualquer informação associada. E assim o doclisboa pôs termo à parceria que mantinha com a RTP 2, o que não deixa de ser um acto de imensa coragem face ao monopólio que a televisão e o Estado detém num país como o nosso e sabendo tudo aquilo que o próprio festival pode perder num contexto mediático que arrisca tornar-se-lhe avesso. O anúncio aconteceu ontem, dia 15, quarta-feira, durante uma conferência de imprensa realizada na Culturgest destinada a revelar os primeiros pormenores da programação prevista para a sétima edição do doclisboa que se realizará entre os dias 15 e 25 de Outubro, e não deixa de ser uma "bomba". Os motivos que levaram à ruptura estão claramente expostos no dossier de imprensa avançado pela Apordoc, a associação responsável pela organização do doclisboa e principal defensora do documentário em território nacional, razões que vale a pena aqui enunciar e exemplificam bem o estado a que as coisas chegaram:

"As televisões públicas são na Europa e no mundo as principais entidades financiadoras do documentário.

(...)

As televisões públicas de cada país co-produzem, compram e transmitem centenas de documentários todos os anos. O financiamento e a exibição de documentário faz parte dos deveres cívicos de uma televisão. Faz parte da sua razão de ser enquanto produtora de património e enquanto desejável formadora do grande público.

Infelizmente, em Portugal, o serviço público de televisão não assegura estas funções. Existem dois canais públicos de televisão, de costas voltadas para o cinema e para o documentário. O número de horas que exibem de documentário é insignificante. O orçamento que atribuem à compra e à co-produção (nacional e internacional), bem como a programação que fazem, são ridículos. Os valores investidos são menos do que um décimo do que seria necessário a um serviço público de televisão.

(...)

Em Portugal, a RTP 2, que se intitula sem ironia «A Estação dos Documentários» (e afirma publicamente que é das estações que transmite mais documentário na Europa!), transmite – de forma irregular e sem nexo – pouco mais do que um documentário por semana (na maior parte dos casos os documentários nem sequer são anunciados nas revistas de televisão. Lê-se apenas “documentário a programar”).

Para além do desinteresse manifesto dos governantes pelo assunto, pouco compreendemos quando falamos com os directores de programas. Num primeiro tempo advogam ter a melhor televisão da Europa. Depois de pressionados, apresentam-nos duas respostas para a ausência de documentários: a falta de orçamento e o desinteresse das audiências. Ambas as respostas são discutíveis.

No que diz respeito às audiências, a justificação é inaceitável. O dinheiro investido pelo Estado na RTP deveria permitir o enriquecimento (espiritual) dos cidadãos. Em diversos países europeus com televisões de qualidade (reconhecidas por todos como tal), as sondagens apontam o documentário como o tipo de programa mais bem pontuado pelas audiências.

Aproveitando a ignorância que o público e os jornalistas têm do que são canais públicos de televisão de referência (YLE, TSR, STV, TV3 Cataluña, RTBF, ZDF, WDR, France 5), a direcção da RTP permite-se fazer declarações sobre a sua programação, comparada a outras estações europeias, que não têm qualquer gota de verdade. São pura fraude.

O doclisboa e a Apordoc têm relações estreitas com os canais de televisão europeus que co-produzem, compram e exibem documentários. O doclisboa e a Apordoc sabem muito bem o que é um canal de televisão que se interessa por documentários. A RTP definitivamente não o é.

(...)

Consideramos que uma parceria com um serviço público de televisão semelhante torna-se indecorosa para nós. O que se passa na RTP há décadas é da ordem do crime. É um crime contra o património e um crime contra os cidadãos."

São palavras fortes, portanto, as que temos a marcar o próximo doclisboa, que no entanto não nos devem levar a fugir ao essencial: a qualidade da programação a que nos habituou e que promete para a próxima edição óptimas novidades. Entre elas, temos uma retrospectiva da obra de Jonas Mekas, considerado uma lenda viva do cinema independente norte-americano, cuja presença em Lisboa é co-patrocinada pelo Museu Reina Sofia de Madrid (perde-se uma parceria, mas ganha-se outra) e dará oportunidade a assistir a uma Masterclass dada pelo realizador na Culturgest a partir de excertos dos seus filmes. Também os Balcãs estarão em destaque através de um secção intitulada Balcãs em Foco que procura dar a conhecer a cinematografia dessa região e levar-nos a compreender as complexidades de um território habitado por vários povos, países e religiões em conflito. Love Stories trará ainda uma programação especial destinada a revelar histórias de amor únicas, especialmente registadas no campo do documentário. Mantêm-se as secções pilares do festival (Competição Internacional, Investigações, Competição Nacional, Riscos e Heart Beat) com uma ligeira diferença: este ano haverá mais um prémio na Competição Internacional, agora dividida em longas (mais de 60 minutos), médias (30 a 60 minutos) e curtas metragens (menos de 30 minutos).

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